Uma Bolívia profunda para além das eleições
Ensaio dos professores da UFF Carlos Walter Porto-Gonçalves e Licio Caetano do Rego Monteiro
As recentes eleições bolivianas expõem, para além das apressadas manifestações de vitória do “socialismo” e da “democracia”, as profundas clivagens que nos atravessam como latinoamericanos no movimento desigual, segundo os calendários e as geografias. Os desafios que se apresentam no horizonte são enormes a começar pela histórica colonialidade que marca nossa formação social em que a sobreposição étnico-racial/classe se mostra estruturante. Afinal, o ódio de classe travestido de preconceito anti-indígena salta à vista e foi atualizado com o golpe de estado que apeou a cúpula masista do poder sob alegação de fraude eleitoral em 2019.
Além do caráter antidemocrático que caracteriza nossas oligarquias há que se indagar sobre o estranho comportamento das lideranças do MAS, a começar pela renúncia (a convite) de Evo Morales e de seu Vice Garcia Linera, além das sucessivas autoridades masistas que renunciaram a ocupar a presidência da República e, ainda, uma espécie de co-governo dos parlamentares masistas com a autodeclarada Presidente Jeanine Aiñez, desde o golpe. Caso não se compreenda essa estranha combinação, tudo indica que ela poderá se reproduzir agora com a ordem invertida, o MAS no governo e os conservadores com seu espaço resguardado nas posições de poder, ou com a retomada de impulsos golpistas em novas rodadas de violência política como aquelas testemunhadas em 2019. Esta situação pode se mostrar ainda mais crítica diante do aprofundamento da crise que já estava em curso agravada pela pandemia do coronavírus. Afinal, por mais que sejam diferentes o modo como as diferentes forças políticas tratam os mesmos problemas, o fato é que estamos diante de uma crise profunda do capitalismo que limita as ações nos marcos da ordem, ainda mais restritas nos países da periferia, como é o
caso da América Latina.
Desafortunadamente para o pensamento crítico latino-americano a análise do processo político tem sido reduzida à sua dimensão institucional e a democracia reduzida aos seus aspectos procedimentais eleitorais, ainda que, até mesmo, esses procedimentos venham sendo desmoralizados sobretudo por setores à direita do espectro político, como se viu recentemente nas denúncias de fraudes eleitorais no Brasil nas eleições de 2014, com Aécio Neves não reconhecendo os resultados eleitorais e, em 2018, quando Jair Bolsonaro antecipou-se colocando em dúvida uma eventual derrota, ou com Donald Trump denunciando possível fraude caso não vença as eleições, em 2020, na Bolívia, as mesmas forças políticas conservadoras não reconheceram a derrota, em 2019, e deram um golpe e, ainda, como vinha sendo feito na Venezuela diante das sucessivas derrotas das forças conservadoras e pró-imperialistas pelo bolivarianismo. Um largo etecetera poderia ser acrescentado.
O que o processo boliviano está nos indicando é a necessidade de recuperarmos as análises de fundo das estruturas das relações sociais e de poder para que compreendamos o que está em curso nas suas conexões com os tempos de média e longa duração. Não podemos olvidar a atualidade da história de larga duração colonial em sua estrutura social onde a classificação social [1] (Quijano) é marcadamente étnico-racializada. Ainda que os símbolos indígenas tenham sido recuperados nos recentes governos masistas, as estruturas mais profundas da colonialidade permaneceram, sobretudo quando se considera a dimensão das territorialidades numa formação social abigarrada [2] (Zavaleta Mercado, 1982) como a boliviana. O caráter plurinacional e comunitário inscrito na nova constituição do estado boliviano, assim como os direitos da natureza, poderosas contribuições originadas do movimento indígena, camponês e das periferias urbanas indígeno-mestiças, não avançaram como se poderia esperar.
Mas o que os recentes resultados das eleições bolivianas parecem indicar é que os movimentos sociais demonstraram uma força para além das suas lideranças carismáticas. Talvez aqui resida um grande aprendizado das forças populares que demonstraram que o MAS é mais que Evo Morales, o que bem pode ser uma leitura do abandono a que foram lançadas com as múltiplas renúncias das mais de 3 dezenas de autoridades masistas, Evo Morales e Garcia Linera à cabeça, que faziam parte da sucessão presidencial. Afinal, as fissuras sobretudo depois de 2011, que haviam se estabelecido na Pacto de Unidade que havia levado o MAS ao governo em 2005, parece que foram superadas, pelo menos nesse período pós-golpe de 2019 até as recentes eleições.
É preciso relembrar que desde os anos 1990, uma poderosa articulação política de movimentos sociais deu origem ao IPSP – Instrumento Político para la Soberania de los Pueblos. Observemos que se tratava de uma organização política de movimento sociais que recusava as formas hierárquicas de organização tradicional de partidos políticos. Mesmo o MAS que, num segundo momento, se apresenta como uma organização para participar de eleições traz, em seu próprio nome, essa fina percepção por parte de l@s de abajo dos limites dos partidos políticos e, por isso, é Movimento al Socialismo e não Partido Socialista. Observe-se que o IPSP fala de pueblos e não pueblo no singular e, assim, já indicando uma tensão com o nacionalismo tradicional já insinuando o que, mais tarde, ensejaria o caráter plurinacional do estado[3]. Acrescente-se, ainda, as inúmeras propostas que procuravam evitar a separação entre representante e representado que impunha restrições à permanência nos cargos e estímulo à rotatividade, ao contrário do
que Evo Morales viria fazer. Tudo isso deve ser trazido ao debate justamente agora quando as eleições revelam essa Bolívia Profunda que havia sido profundamente desgastada pelas reiteradas reeleições que Evo Morales conseguira através de chicanas jurídicas com argumentos, no mínimo pueris, como o de que era um “direito humano” se candidatar a mais um mandato presidencial, como reconhecera o Judiciário, até a revogação, também consagrada pelo Judiciário, de um plebiscito em que pleiteara mais um mandato, como se o chamado processo de câmbio não pudesse caminhar sem seu líder. Todo o desgaste dessas manobras levou a que o MAS de Evo Morales tivesse uma vitória apertada no pleito de 2019 do que se aproveitaram as forças oligárquicas tradicionais para dar o golpe. Enfim, a recente vitória eleitoral revela que as forças populares são maiores do que o MAS que, por sua vez, é maior que Evo-Linera, assim como são mais fortes do que acreditavam as forças retrógradas que teimavam em ver as forças populares, sobretudo os indígenas, como “marionetes do chavismo”, “organização criminosa” ou “grupo narcoterrorista”.
Muitas são as lições que o processo boliviano nos oferece. Apesar dessa força que a Bolívia Profunda agora expõe de forma manifesta, ela não foi capaz de evitar o golpe de 2019, o que demonstra que essa possibilidade se coloca no horizonte se os mesmos erros forem de novo cometidos, a começar por uma certa soberba do chamado progressismo em subestimar a potência do movimento auto organizado. O preço pago pelo povo boliviano nesse interregno do golpe até a recente eleição foi grande, não só com mortes de ativistas como também com políticas antipopulares como se viu no tratamento do coronavírus como, ainda, com denúncias de corrupção, tema brandido pelas classes dominantes ainda que a pratiquem amplamente como se viu no governo de Jeanine Aiñez. Esses “índios de mierda” não cabiam no modelo (ou drama?) de desenvolvimento dos golpistas.
Considere-se, entretanto, que as denúncias de corrupção também foram brandidas contra o governo do MAS de Evo-Linera, o que também contribuiu para o seu desgaste. Do ponto de vista das forças populares, essa é uma questão que não pode ser descuidada. A corrupção é um tema sensível nesse contexto e a cruzada anticorrupção tem sido manipulada como instrumento de desestabilização política na América Latina, bem como de interferência dos EUA nos sistemas jurídicos dos demais países, tornando-se até mesmo objeto da estratégia nacional de segurança dos EUA. Na Bolívia, a cruzada anticorrupção se plasma com a cruzada antidrogas, considerando que a economia ilegal da coca tende sempre a contaminar instituições policiais, jurídicas e políticas em diversas escalas. Embora os EUA se arvorem uma superioridade moral sobre os demais países alimentando a guerra às drogas no continente, é importante lembrar que 1) os EUA seguem sendo o principal mercado consumidor de cocaína no mundo, 2) a economia ilegal
das drogas está imbricada com a lavagem de dinheiro, os paraísos fiscais e o sistema bancáriofinanceiro e 3) operações ocultas dos órgãos de inteligência dos EUA, em suporte a guerras de contra insurgência, foram financiadas por dinheiro de origem suspeita.
Em 2020, a UNODC – Organização das Nações Unidas para o Combate às Drogas e ao Crime – publicou dados informando que a produção de coca na Bolívia havia ampliado em 10% a área de cultivo de 2019 em relação ao ano anterior. O governo golpista de Jeanine Aiñez se apressou em culpar o governo anterior, de Evo Morales, pelo aumento. Registre-se que em 14 anos de governo do MAS de Evo, que expulsara a DEA do país, a média da produção de coca se manteve mais ou menos constante, ao contrário da Colômbia, onde se manteve a repressão e a produção de coca disparou nos anos 2010, embora ali seja grande a presença de militares estadunidenses e agentes da DEA. Em 2017, Evo Morales assinou decreto permitindo a expansão da área de cultivo de coca na Bolívia de 12 mil para 22 mil hectares no total, medida que beneficiou principalmente os cocaleros da região do Chapare, cuja destinação predominante da coca produzida é para o mercado da cocaína, o que desagradou lideranças cocaleras de Yungas, de onde sai a maior parte da produção de coca de consumo tradicional.
Essa tensão interna aos movimentos sociais é um dos maiores desafios que a rede de movimentos sociais enfrenta. Essa tensão esteve na base do rompimento do Pacto de Unidade, em 2010-2011, cujo ápice se deu no conflito do TIPNIS quando o governo do MAS de Evo-Linera não só reprimiu a VIIIª Marcha que caminhava em direção a La Paz, diga-se, de passagem, a maior manifestação popular até então da história da Bolívia, como apoiou os cocaleros do Polígono Sur no TIPNIS contra os povos indígenas das terras baixas – Tsimanes, Yuracaré, e Moxeño Trinitario – na abertura de uma estrada que cortava ao meio a Terra Indígena Parque Nacional Isiboro-Sécure[4] que, inclusive, facilitava o acesso à exploração de petróleo e gás (Porto-Gonçalves e Bettancourt, 2014)[5]. Essa clivagem interna aos de abajo está atravessada pelas opções políticas que se colocam no horizonte, seja a de continuidade de um desenvolvimentismo com base na extração de recursos naturais que vinha sendo posto em prática pelos sucessivos governos do MAS de Evo-Linera, que aprovou o uso de transgênicos e a exploração mineral em áreas de conservação ambiental, seja a da opção que busca afirmar o Bem-conviver – Sumaq Qausay, Sumak Lamaña, a Loma Santa, a Terra Sem Males -, a plurinacionalidade, a interculturalidade e os direitos da natureza, enfim, o pacto em parte plasmado na Constituição do Estado Plurinacional e Comunitário da Bolívia.
A coca, enfim, é um tema nevrálgico para os destinos da sociedade boliviana, sobretudo para o devir de seus grupos/classes sociais em situação de subalternização, com destaque para os povos indígenas. O tema está no centro do amálgama social indígena-camponês que conformou o bloco histórico que levou o MAS ao governo, em 2005. Afinal, foi na tensão com a DEA, agência estadunidense formalmente de combate às drogas, com sua obsessão para controlar a coca boliviana com sua política em nome da erradicação da coca que se criaram os conceitos de “coca excedentária” e “coca tradicional”: a primeira seria a coca do mercado bandido e a outra, a coca tradicional, aquela que se acullica (do quecha akullikuy) e que torna a vida possível nos Andes, tradicionalmente mascada pelos povos andinos antes mesmo da invasão colonial. É famosa a
declaração de Evo Morales reagindo à proposta do embaixador estadunidense nos finais dos anos 1990 que queria “cero de coca”, ao que o líder cocalero contestou dizendo: ”cero de coca es cero de quéchua, cero de aymara e cero de guarani”. Nesse momento, Evo Morales deixa de ser um líder meramente cocalero ao afirmar que a legitimidade da coca se dá por encarnar o indígena. Considere-se que esse bloco histórico desde abajo se forma contra uma agência do imperialismo estadunidense e, assim, afirma um nacionalismo popular que será a base da primeira vitória das forças populares no mundo contra a privatização da água, em Cochabamba no ano 2000, e na luta pela nacionalização dos hidrocarburos (petróleo e gás), em 2003.
A eleição, em 2005, do MAS não se explica sem esse histórico recente de auto-organização popular que, inclusive, avança um repertório teórico-político próprio em que o indígena cumpre um papel de enorme relevância. Em outros termos, é a coca tradicional, indígena, que empresta legitimidade a essa atividade e a esse bloco político por seu caráter sagrado e que torna a vida não só agradável, como possível, nas maiores altitudes. É claro, a coca tem outros usos legítimos além desse, por exemplo, na medicina para a produção de anestesias.
Não silenciemos e encaremos de frente esse debate, aliás, como tem feito o Vice-Presidente recém-eleito David Choquehuanca, ele que foi Ministro de Relações Exteriores dos governos do MAS e um dos pilares da matriz de racionalidade indígena no interior do MAS. A sua candidatura foi, inclusive, uma exigência desses setores quando a alta cúpula do MAS buscava uma candidatura mais palatável junto às classes médias que, na Bolívia, são sobretudo brancomestiças, mais que indígeno-mestiças. Não olvidemos que Evo Morales, por mais que se encaixe naquilo que Darci Ribeiro chamou de indigenato[6], um camponês etnicamente diferenciado, era sobretudo um líder cocalero mais que um líder indígena, como é o caso de David Choquehuanca intelectual com que o movimento indígena-campesino-popular identifica como a expressão da Bolívia Profunda. Foi ele que, como chanceler, lavrou uma luta brilhante para descriminalizar a coca nos organismos internacionais.
As apurações das eleições ultrapassaram amplamente o que as pesquisas de opinião vaticinavam, ensejando o que alguns articulistas viriam chamar de “voto oculto” e “voto
paciente” reinventando, desde abajo, as maiorias silenciosas. A chapa do MAS Arce-Choquehuanca obteve 55,1% dos votos válidos, livrando mais de 26% sobre o candidato da
direita, o intelectual Carlos Mesa[7], e mais de 41% sobre o candidato da extrema direita, o Sr. Fernando Camacho[8]. Chama a atenção que os votos em branco pouco ultrapassaram o 1% e os nulos pouco mais de 4%, o que empresta altíssima legitimidade ao processo. A chapa vencedora ganhou em 6 dos 9 Departamentos da Bolívia, com destaque para a vitória arrasadora, com mais de 68% dos votos na capital, La Paz. Carlos Mesa ganhou em dois Departamentos, mas não conseguiu penetrar em Santa Cruz, onde Fernando Camacho dominou. Aliás, os dois candidatos da direita pagaram seu preço pelo seu protagonismo no golpe de 2019 pelo seu atávico caráter anti-indígena, pela grave crise econômica e social que já vinha se desenhando e que foi agravada pela pandemia do coronavírus e pelo tratamento a ela dado pelo governo da Srª Aiñez. O movimento que dera origem ao IPSP e que culminara no Pacto de Unidade que levou o MAS ao governo da Bolívia, em 2005, soube tirar as lições do golpe de 2019, superá-lo com unidade e,
com o “voto oculto” ou “voto paciente”, soube derrotar as direitas e retomar o governo a partir de sua auto-organização. E, assim, se recuperar de seu próprio desgaste, em grande parte derivado de suas relações clientelísticas com o governo deposto do MAS de Evo-Linera.
A crise que se desenha no horizonte, já partindo de uma situação dramática para as maiorias, cobra de cada um de nós que tenhamos no horizonte um projeto de poder, para além de chegar ao governo. A experiências em curso na América Latina/Abya Yala são inspiradoras e a Bolívia é uma das nossas principais fontes de inspiração. Mas o desafio é grande e existem experiências ao contrário também em curso na América Latina, como a do Equador, com Lenin Moreno, e no Brasil, com o desgaste do PT.
Enfim, não está fora do horizonte que o MAS se converta numa força domesticada, liderada por um moderado que promova uma transição à direita de forma gradual e com algum respaldo social, o que o recente golpe de 2019 mostrou ao que pode levar. A questão-chave seria: as forças populares permitiriam essa conciliação ou vão manter o governo sob pressão popular? Terão força para isso ou as clivagens dos tempos do governo do MAS de Evo-Linera vão se acentuar? O processo em curso indica que o movimento se reunificou de forma bastante eficiente, ainda que as figuras de Evo Morales e Garcia Linera tenham tido um papel relevante no processo eleitoral. A questão que se coloca é até que ponto o movimento terá superado sua relação clientelística, como se dera no governo do MAS de Evo-Linera apeado pelo golpe de 2019, como parece ter encontrado um ponto de equilíbrio durante o recente processo eleitoral, mantendo sua unidade com autonomia e conseguindo impor na chapa vencedora um representante que, até aqui, tem sabido honrar as matrizes indígenas subjacentes à Bolívia Profunda. E não descolemos a Bolívia de Nuestra América, haja vista que seu destino está ligado ao da América Latina: se em direção à retomada mais radicalizada dos processos de transformação dos anos 2000 ou se em direção a uma esquerda sem asas, tolerada como amortecedora dos conflitos e disciplinada na subserviência aos EUA ou à China.
Enfim, mais do que dizer que as esquerdas progressistas voltam a se afirmar contra as direitas na América Latina, como querem certos analistas cortoplazistas, o que o processo boliviano nos indica é que estamos diante de processos profundos de transformação que exigem reinvenção da democracia em que a representação não anule o protagonismo popular e que seja o que seu nome enseja: um governo do povo, pelo povo, para o povo. Aqueles que se apressam em apostar na reversão dos golpes e autoritarismos pela via das eleições, usando o exemplo boliviano como tábua de salvação para suas ilusões, talvez tenham que olhar menos os resplandecentes resultados eleitorais – muito bem vindos no atual momento de retrocessos na América Latina – e mais a alta capacidade demonstrada pelos movimentos populares bolivianos em manter suas formas de auto-organização mesmo num contexto altamente adverso. Enfim, que se pense numa outra ordem social, na medida que esse pêndulo que vem nos (des)governando entre direitas e certas esquerdas já demonstrou que se remetem um ao outro e nos limitam os horizontes.
Niterói e Parati, 23 de outubro de 2020.
[1] O sociólogo peruano Aníbal Quijano avançara a ideia de que devíamos pensar nos processos de classificação social mais do que em classes sociais como algo substantivo. Sua ideia se aproxima do historiador marxista inglês E.P. Thompson que afirmara que na expressão “luta de classes” o termo forte é “luta”, mais que “classe”. Afinal, são nas lutas que as classes se constituem. Consultar Quijano, A. 2009. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In Santos, B. e Menezes, M.P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Ed. Medina e CES, Coimbra, Portugal.[2] Abigarrado é uma expressão boliviana de difícil tradução ao português. Uma metáfora talvez ajude nessa tarefa: abigarrado seria como a convivência, num mesmo copo, da água e do óleo que convivem sem se misturar. Assim seria a sociedade boliviana onde várias sociedades diferentes convivem e se relacionam sem se misturar. René Zavaleta Mercado, um dos mais lúcidos intelectuais latino-americanos, cunhara o conceito de “forma primordial” para caracterizar que, na Bolívia, as diversas sociedades mantiveram sua
capacidade de reprodução apesar das pressões que receberam ao longo da história colonial. (Resiliência?). Consultar Zavaleta Mercado, R. 1982. Las Determinaciones Dependientes y la Forma Primordial. In ARAVENA, Francisco Rojas. América Latina: desarrollo y perspectivas democráticas. San José. Uma relevante contribuição sobre o “abigarramiento geopolítico” e a distinção entre as geopolíticas do MAS e a dos movimentos indígenas, originários e campesinos da Bolívia pode ser lida em “Tinku e Pachakuti: geopolíticas indígenas originárias y Estado plurinacional en Bolívia”, de Pablo Uc (2019)”. [3] É preciso considerar que a Bolívia experimentara, em 1952, uma revolução em que a classe operária cumprira um papel de destaque. No entanto, já ali, uma tensão se expressara no interior das forças revolucionárias entre as esquerdas comunistas e socialistas e os povos indígenas. O caráter eurocêntrico que atravessa as correntes hegemônicas de esquerda, da socialdemocracia aos comunistas, se expressou com o parcelamento dos territórios comunitários andinos quechua-aymaras, os ayllus, transformados em pequenas propriedades camponesas com a Reforma Agrária. Essa clivagem vai se expressar publicamente com a emergência campesino-indígena no Manifiesto de Tiahuanaco, em 1973 e, mais ainda, em 1979, com o novo momento constitutivo (Zavaleta Mercado, 1986) onde o indígena-camponês começa a se
afirmar. Sobre o conceito de “momento constitutivo” consultar Zavaleta Mercado, R. 1986. Lo Nacional Popular en Bolivia. Ed. Siglo XXI, México. Hoje, esse legado teórico-político se expressa na questão das territorialidades implicada no caráter plurinacional e comunitário consagrado na nova constituição política, mas com enorme dificuldade de ser levado à prática devido à colonialidade do poder e do saber. Vide os casos TIPNIS e Charagua, entre outros. A mesma questão se expressara no affair envolvendo os
Miskitos no interior da Revolução Sandinista, na Nicarágua entre 1979 e 1989.