Neofascismo: um fenômeno planetário. O caso Bolsonaro – Por Michael Löwy
Por Michael Löwy *
Observamos nos últimos anos uma espetacular ascensão da extrema direita reacionária, autoritária e/ou “neofascista”, que já governa metade dos países em escala planetária: um fenômeno sem precedente desde os anos 1930. Alguns dos exemplos mais conhecidos: Trump (USA), Modi (Índia), Urban (Hungria), Erdogan (Turquia), ISIS (o Estado Islâmico), Duterte (Filipinas), e agora Bolsonaro (Brasil). Mas em vários outros países temos governos próximos desta tendência, mesmo que sem uma definição tão explicita: Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão, (Shinzo Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia, etc.
Em cada país esta extrema direita tem características próprias: em muitos países (Europa, Estados Unidos, Índia, Birmânia) o “inimigo” – isto é, o bode expiatório – são os muçulmanos e os imigrantes; em certos países muçulmanos são minorias religiosas (cristãos, judeus, yezhidis). Em alguns casos predomina o nacionalismo xenofóbico e o racismo, em outros o fundamentalismo religioso, ou então o ódio à esquerda, ao feminismo, aos homossexuais.
Apesar dessa diversidade há alguns traços comuns à maioria, senão a todos: o autoritarismo, o nacionalismo integral – “Deutschand über alles” e suas variantes locais: “America First”, “O Brasil acima de tudo”, etc. – a intolerância religiosa ou étnica (racista) contra o “Outro”, a violência policial/militar como única resposta aos problemas sociais e à criminalidade.
A caracterização como fascista ou neofascista pode se aplicar a alguns, mas não a todos. Algumas forças políticas têm características diretamente fascistas: é o caso do partido “Aurora Dourada” na Grécia, da Casa Pound na Itália, e de vários partidos nacionalistas nos países bálticos; na Ucrânia, na Bulgária e em outros países do Leste europeu. Outros, como os partidos racistas da Holanda, Inglaterra, Suíça, Dinamarca, não tem raízes no passado fascista.
Proponho designar como “neofascistas” líderes, partidos, movimentos ou governos que tem semelhanças significativas com o fascismo clássico dos anos 1930 – e com frequência, raízes históricas nesse passado – mas também algumas diferenças substanciais. Trata-se de fenômenos novos, que não são idênticos aos que conhecemos no passado. Alguns exemplos: o partido de Marine Le Pen na França, o FPÖ (“Liberal”) da Áustria, o partido Vlams Belang na Bélgica, Salvini e a Lega italiana, Jair Bolsonaro (sem partido orgânico), etc. Trump tem alguns aspectos neofascistas, mas misturados com o reacionarismo tradicional.
Outros conceitos têm sido usados para designar a extrema-direita atual. O termo “conservadorismo” é muito utilizado no Brasil, mas não é o mais apropriado: não se trata de uma corrente conservadora, no sentido de tradicionalista, nostálgica do passado, mais de um autoritarismo violento, moderno, geralmente neoliberal.
Bem pior é o caso do termo “populismo”, muito utilizado pela mídia burguesa e pela ciência política acadêmica para designar a extrema-direita. Trata-se de um conceito inoperante e mistificador por varias razões: (a) sua definição é tão vaga e imprecisa – “populistas são líderes que se dirigem diretamente ao povo, pretendendo lutar contra as elites” – que pode se aplicar praticamente a qualquer liderança política; (b) não tem nada a ver com o que habitualmente se designa como populismo, em particular na América Latina: Vargas, Perón, Cárdenas, João Goulart, termo que designa líderes com um discurso e, até certo ponto, uma prática nacionalista, anti-imperialista e um programa de reformas sociais moderadas; (c) funciona como um eufemismo, ocultando a realidade destes líderes e regimes de extrema direita, profundamente antipopulares, intolerantes, com traços fascistizantes; (d) serve para confundir o público, colocando no mesmo saco, como “populistas de direita e de esquerda”, todos os críticos da globalização neoliberal.
Para compreender o neofascismo
Como explicar essa espetacular ascensão da extrema-direita e do neofascismo, em forma de governos, mas também de partidos políticos que ainda não governam, mas tem ampla base eleitoral e influenciam a vida política do país (França, Bélgica, Holanda, Suíça, Suécia etc.)? É difícil propor uma explicação geral para fenômenos tão diferentes, que são expressões de contradições especificas de cada país ou região do mundo. Mas, como se trata de uma tendência planetária, é necessário pelo menos examinar algumas hipóteses.
A mais evidente, e sem dúvida pertinente, é que a globalização capitalista – que é também um processo de brutal homogeneização cultural – produz e reproduz, em escala mundial, formas de “pânico identitário”(o termo é do crítico marxista francês Daniel Bensaïd), alimentando manifestações nacionalistas e/ou religiosas intolerantes e favorecendo conflitos étnicos ou confessionais. Quanto mais a nação perde seu poder econômico devido a globalização, tanto mais se proclama a imensa glória da Nação “Acima de Tudo”.
Outra explicação seria a crise financeira do capitalismo, iniciada em 2008, e suas consequências: depressão econômica, desemprego, marginalização. Esse fator foi sem dúvida importante para a vitória de Trump ou de Bolsonaro, mas é bem menos válido para a Europa: em países ricos, menos afetados pela crise, como Suíça e Áustria, a extrema direita tem um grande poder, enquanto que nos países mais atingidos pela crise, como Portugal, Espanha e Grécia, é a esquerda ou a centro-esquerda que é hegemônica, enquanto que a extrema-direita é periférica.
Esses dois processos se dão em uma sociedade capitalista na qual o neoliberalismo opera desde os anos 1980, aprofundando as desigualdades e as injustiças sociais e concentrando riquezas – como acontecia no capitalismo liberal pré-1929.
Estas explicações são úteis, pelo menos em alguns casos, mas são insuficientes. Não temos ainda uma análise global, que dê conta de um processo que é mundial, e que ocorre em um momento histórico determinado.
Um retorno ao passado?
Seria uma volta aos anos 1930? A historia não se repete: existem evidentes semelhanças, mas os fenômenos atuais são bastante diferentes dos modelos do passado. Sobretudo, não temos – ainda – Estados totalitários comparáveis com o regime fascista italiano ou o Terceiro Reich nazista.
Os partidos neofascistas atuais não organizam tropas de choque paramilitares uniformizadas para aterrorizar a esquerda, como era o caso dos “camisas negras” de Mussolini, ou da Sturm Abteilung (SA) de Adolf Hitler.
A análise marxista clássica do fascismo o define como uma reação do grande capital, com o apoio da pequena burguesia, diante da ameaça revolucionária do movimento operário. Podemos nos interrogar se esta interpretação realmente explica a natureza do fascismo na Itália, Alemanha ou Espanha, nos anos 1920 e 1930.
De todo modo, ela não é pertinente no mundo atual, por várias razões: (a) não existe, em nenhum dos países em que o neofascismo está em ascensão, uma “ameaça revolucionária”; (b) o grande capital manifesta pouco entusiasmo pelo programa econômico “nacionalista” da extrema direita, embora possa vir a se acomodar a essa política; (c) o apoio aos Trump, Bolsonaro ou Le Pen não se limita à pequena burguesia, mas inclui grandes contingentes populares e mesmo da classe operária.
Esse conjunto de diferenças justifica o uso do termo “neofascismo” para designar forças políticas que apresentam traços fascistas, mas não são uma reprodução do passado.
O site francês Mediapart (https://www.mediapart.fr), em um editorial recente, a propósito da ascensão da extrema direita na França e no mundo, escreveu: “são cinco minutos antes de meia noite”. Mas não é tarde demais para tentar impedir a “resistível ascensão de Arturo Ui” – para citar o título da famosa peça de teatro antifascista de Bertolt Brecht.
No Brasil
O fenômeno Bolsonaro tem muito em comum com esta vaga planetária “marrom” (cor da camisa das milícias nazistas dos anos 1930). Mas há algumas diferenças importantes quando comparamos, por exemplo, com a Europa:
(1) em vários países europeus existe uma continuidade política e ideológica entre movimentos neofascistas atuais e o fascismo clássico dos anos 1930, mas esse não é o caso no Brasil. O fascismo brasileiro, o integralismo, chegou a ter bastante peso nos anos 1930, inclusive influenciando o golpe do Estado Novo em 1938. Mas o fenômeno Bolsonaro tem pouca ou nenhuma relação com essa matriz antiga; pouquíssimos entre seus partidários sabem o que foi o integralismo.
(2) ao contrário da maioria da extrema direita europeia, Bolsonaro não fez do racismo sua principal bandeira. Certo, algumas de suas declarações tinham claro caráter racista, mas não foi o tema central, mobilizador, de sua campanha.
(3) o tema da luta contra a corrupção está presente no discurso da extrema direita europeia, mas de forma marginal. No Brasil é uma velha tradição, desde os anos 1940, dos conservadores: se levanta a bandeira do combate à corrupção para justificar o poder das oligarquias tradicionais e, segundo o caso, legitimar golpes militares. Bolsonaro conseguiu manipular este sentimento legitimo de indignação contra os políticos corruptos para se impor, e venceu a disputa de opinião na sociedade, ao identificar (falsamente) o PT como o núcleo do sistema político do Estado brasileiro e como o principal responsável pela corrupção.
(4) o ódio à esquerda, ou ao centro-esquerda – no caso do Brasil, ao PT – não é um tema importante da extrema-direita na Europa ocidental; ele está presente nas correntes pró-fascistas da Europa oriental, território das antigas “democracias populares”. Neste caso, trata-se de uma referência a uma experiência real do passado; no caso brasileiro, o discurso violentamente anticomunista de Bolsonaro nada tem a ver com a realidade brasileira presente ou passada. Ele é tanto mais absurdo quando se considera que a Guerra Fria acabou há várias décadas, a União Soviética não existe mais, e o PT obviamente nada tinha a ver com o comunismo (em qualquer definição possível deste termo).
(5) Enquanto boa parte da extrema direita, em particular na Europa, denuncia a globalização neoliberal, em nome do protecionismo, do nacionalismo econômico e do combate à “finança internacional”, Bolsonaro propõe um programa econômico ultraliberal, com mais globalização, mais mercado, mais privatizações, além de um completo alinhamento com o Império norte-americano. Isto lhe garantiu, sobretudo no segundo turno, o apoio decisivo das forças do capital financeiro e industrial assim como do agronegócio. A oligarquia capitalista brasileira preferia outros candidatos, mas ao se dar conta que Bolsonaro era o único capaz de vencer o PT, aderiu massivamente a ele.
(6) Enquanto que a religião tem um papel limitado na ascensão da extrema direita europeia (salvo na Polônia e Hungria), no Brasil as Igrejas neopentecostais, com seu discurso homofóbico e antifeminista ultrarreacionário, tiveram um papel essencial na vitória de Bolsonaro.
O que é comparável na extrema direita europeia, norte-americana e brasileira (Bolsonaro) são dois temas de agitação sociocultural reacionária: (a) a ideologia repressiva, o culto da violência policial, o chamado a reestabelecer a pena de morte e a proposta de distribuir armas à população para sua “defesa contra a criminalidade”; e (b) a intolerância com as minorias sexuais, em particular em ralação aos homossexuais. Trata-se de um tema de agitação que obtém sucesso em setores religiosos reacionários, com referência católica (Opus Dei, Civitas, etc.) ou, sobretudo, evangélica neopentecostal.
Esses dois temas foram decisivos para a vitória de Bolsonaro. Outros fatores foram importantes: (a) o desgaste do PT e da centro-direita convencional. Mas havia outros candidatos que também poderiam se apresentar como defensores da luta anticorrupção e da palavra de ordem “fora o sistema”, como Marina Silva. Por que não tiveram sucesso? (b) o papel nefasto da mídia. Ela, no entanto, estava dividida: nem todos fechavam com Bolsonaro; (c) as fake news, enviadas por meio de mensagens do aplicativo WhatsApp, a milhões de brasileiros. Resta explicar porque tantas pessoas acreditaram em mentiras tão grosseiras; (d) o desejo de parte significativa da população de um “Salvador da Pátria”, um “Homem Forte”, um “Mito”, capaz de “restabelecer a ordem” e “limpar o país”.
Ainda falta uma explicação convincente do incrível sucesso, em poucas semanas, da candidatura de Bolsonaro, a despeito de sua pregação da violência, da truculência, da misoginia, da ausência de programa e da apologia descarada da ditadura e da tortura.
Armando Boito publicou recentemente um artigo muito interessante em A terra é redonda (aterraeredonda.com.br), onde define Bolsonaro como “neofascista”. Compartilho essa caracterização, embora discorde da definição que ele propôs, citando Togliatti, do fascismo como “um movimento reacionário de massa enraizado em camadas intermediárias das formações sociais capitalistas.” Essa definição talvez fosse correta nos anos 1930, mas é bem menos pertinente no século 21. Hoje em dia, Marine Le Pen e Bolsonaro – para citar dois exemplos de neofascismo – dispõe de amplo apoio entre setores das classes populares, inclusive entre operários.
Uma das mais importantes contribuições do ensaio de Boito é sua caracterização da ideologia neofascista de Bolsonaro: “fascismo e o neofascismo são movidos por um discurso superficialmente crítico e ao mesmo tempo profundamente conservador sobre a economia capitalista e a democracia burguesa – crítica ao grande capital e defesa do capitalismo; crítica à corrupção e à “velha política” combinadas com a defesa de uma ordem autoritária. A ideologia de ambos é heterogênea e pouco sistemática; nela se destacam a designação da esquerda como o inimigo a ser destruído (Bolsonaro não proclamou abertamente em discurso transmitido nos telões da Avenida Paulista que a esquerda em seu governo deveria emigrar ou iria para a prisão?); o culto da violência (alguma dúvida sobre isso no que respeita ao bolsonarismo?); seu caráter principalmente destrutivo, negativo, não propositivo (Bolsonaro não esclareceu, para justificar sua falta de propostas positivas, que o governo dele será uma quimioterapia para o Brasil?); o irracionalismo (a terra é plana e o aquecimento global uma invenção, certo?); um nacionalismo autoritário e conservador (culto da homogeneidade da sociedade nacional e rejeição dos “desviantes”) e a politização do racismo e do machismo, ervas que brotam espontaneamente no solo da sociedade capitalista – na desigualdade de classe, na organização patriarcal da família, no autoritarismo da empresa capitalista – e que o fascismo alça, com o seu programa partidário, para a cena política” (https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/).
Marilena Chaui também publicou no mesmo site um artigo muito interessante sobre os autoritarismos de nossa época. Marilena recusa o termo “fascismo” para esses novos fenômenos, preferindo o conceito de “totalitarismo neoliberal”. Segundo Chaui, o fascismo era militarista, imperialista e colonialista, o que não é o caso dos atuais regimes autoritários. Me parece um equívoco pois há vários exemplos de fascismos do passado sem vocação imperialista, o franquismo espanhol, por exemplo. O conceito de “totalitarismo neoliberal”, tal como ela propõe é muito rico, mas pode adotar várias formas, uma das quais corresponde ao que estamos chamando de neofascismo.
Sua análise do discurso desses governos autoritários, incluindo naturalmente Bolsonaro, é muito certeira: “Ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio” (https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo/).
À guisa de conclusão
Gostaria de encerrar propondo uma breve reflexão para a ação no Brasil e na América Latina: precisamos construir amplas Frentes Únicas Democráticas e/ou Antifascistas para combater a onda da “Peste Marrom”. Mas não podemos deixar de levar em conta que o sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e reproduz constantemente fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de estado e as ditaduras militares. A raiz desses fenômenos é sistêmica. A alternativa, portanto, tem que ser radical, isto é, antissistêmica. Concretamente isto significa uma alternativa anti-imperialista e anticapitalista: o socialismo. Ou melhor, o ecosocialismo, porque a questão ecológica terá um papel cada vez maior no enfrentamento com Bolsonaro e seu protetor ianque, Donald Trump. Um ecosocialismo afro-indo-americano (parafraseando José Carlos Mariátegui) que supere os limites dos movimentos socialistas do século passado – o compromisso socialdemocrata com o sistema, e a degeneração burocrática do chamado “socialismo real” – recuperando as bandeiras revolucionarias latino-americanas, de Simon Bolívar a Ernesto Che Guevara, de José Martí a Farabundo Marti, de Emiliano Zapata a Augusto Cesar Sandino, de Zumbi dos Palmares a Chico Mendes.
* Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique
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