300 mil vidas perdidas – O Globo, Brasil

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Negacionismo, omissão, incompetência e, sobretudo, desprezo pela vida humana arrastaram 300 mil brasileiros ao túmulo. Um ano e um mês após o registro oficial da primeira infecção pelo novo coronavírus, o Brasil é hoje tudo o que não se queria naquele 26 de fevereiro de 2020. Primeiro país em mortes diárias e segundo em total de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Lá, a curva vem caindo à medida que a população é vacinada. Aqui, não para de subir enquanto faltam vacinas. Na terça-feira, o Brasil superou pela primeira vez a marca macabra de 3.000 mortes por Covid-19 em um só dia — aproximadamente um morto a cada 30 segundos. A cada quatro vítimas fatais do vírus no mundo, hoje um é brasileiro.

As 300 mil vidas perdidas para a Covid-19 no país representam aproximadamente 23% da média anual de mortes antes da pandemia. Grosso modo, de cada cinco mortos no último ano, um estaria vivo não fosse o ambiente hospitaleiro que o vírus encontrou entre nós. Viramos um assumido pária mundial, epicentro da Covid-19 e ameaça sanitária ao planeta.

A história poderia ter sido outra? Certamente. O governo Jair Bolsonaro escreveu de próprio punho cada capítulo do roteiro macabro que nos impôs um luto sem data para terminar. Nada foi por acaso. Em 28 de março do ano passado, quando o país contava apenas 114 mortos pela Covid-19, o presidente foi alertado pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para a gravidade da pandemia e seus efeitos devastadores. Na época, a pior projeção previa 180 mil mortos, caso não fossem tomadas as medidas necessárias. Àquela altura, era plenamente possível evitar o pior. Bolsonaro ignorou o alerta. Continuou agindo como sempre: desprezou máscaras, provocou aglomerações, atacou medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, menosprezou a pandemia — era “só uma gripezinha” — e desdenhou as mortes que não paravam de crescer. Ressoa até hoje seu indiferente “e daí?” diante da tragédia.

No pronunciamento em rede nacional na terça-feira, abafado por panelaços nas capitais, tentou adotar um tom mais sóbrio. Mas continuou a mentir e a distorcer dados para exaltar as ações do governo. “Quero tranquilizar o povo brasileiro e afirmar que as vacinas estão garantidas”, afirmou. “Ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população. Muito em breve retomaremos nossa vida normal.” No mesmo dia, o Ministério da Saúde anunciou a redução de quase dez milhões nas doses previstas para abril, de 57,1 milhões para 47,3 milhões.

Em dois meses de campanha, o país aplicou a primeira dose a pouco mais de 6% da população. De acordo com os dados disponíveis até a última semana para 103 países na plataforma Our World in Data, esse percentual nos coloca na 54ª posição no quesito “proporção da população que tomou ao menos uma dose da vacina”. Nem de longe o que prega a propaganda bolsonarista, na tentativa de eximir o presidente da responsabilidade pela condução desastrosa do combate à pandemia.

Bolsonaro trocou dois ministros da Saúde — os médicos Mandetta e Nelson Teich — pelo general Eduardo Pazuello, cujo único predicado era obedecer-lhe na fixação em adotar um remédio comprovadamente ineficaz contra a doença, a cloroquina. Não tinha como dar certo. Acaba de assumir o quarto ministro na pandemia, o cardiologista Marcelo Queiroga, apresentado ontem a sua primeira crise: o Ministério da Saúde mudou os critérios para registro das mortes e, num passe de mágica, os números despencaram. O governo só voltou atrás depois da grita dos estados.

No Planalto, ainda se procura um cargo para Pazuello, investigado pela tragédia de Manaus, onde pacientes morreram por falta de oxigênio. Os equívocos e as omissões da dupla Bolsonaro & Pazuello ficaram explícitos na atitude diante das vacinas. O governo fez tudo errado. Por omissão, viu-se refém do acordo assinado pela Fiocruz para produzir a vacina da AstraZeneca. Desprezou a oferta da Pfizer em agosto para comprá-la somente agora. Acordou tarde para outros imunizantes. A vacina que sustenta o claudicante Programa Nacional de Imunização é a chinesa CoronaVac, que Bolsonaro torpedeou por ter sido contratada por um adversário, o governador João Doria.

O resultado da gestão inepta é que faltam vacinas, enquanto o vírus e suas variantes fazem a festa. O cenário é caótico. Hospitais entram em colapso, doentes morrem nas filas de espera, faltam oxigênio e sedativos para entubar pacientes, corpos se amontoam em corredores. A pandemia pode até acabar, mas as sequelas durarão anos. Famílias perderam seus provedores, crianças ficaram órfãs, pais e mães enterraram prematuramente seus filhos. Trezentas mil mortes — muitas evitáveis — não podem ficar impunes. Quem será responsabilizado por isso? É preciso que Ministério Público, comissões parlamentares e demais órgãos de controle investiguem as responsabilidades de cada um nessa tragédia sem precedentes.

Por que não se seguiram as recomendações científicas? Por que não foram tomadas as medidas de restrição sabidamente eficazes para conter o vírus? Por que não se testou em massa a população, como fizeram os países que controlaram a epidemia? Por que o Ministério da Saúde abriu mão de coordenar o combate à doença? Por que se desperdiçaram dinheiro e energia com medicamentos inócuos? Por que não foram compradas vacinas a tempo de imunizar a população e salvar centenas de milhares de vidas?

Só ontem, depois de um ano e 300 mil mortes, Bolsonaro anunciou a criação de um comitê nacional para coordenar o combate ao vírus. Ficou claro no discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que a paciência até dos aliados com os erros está no fim. Que este momento, em que Bolsonaro passou a defender a vacinação e aparenta ter caído em si, marque enfim a guinada no combate à pandemia e a adesão a políticas embasadas na Ciência, para que não tenhamos mais de chorar milhares de mortos todo dia.

O Globo

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