Dolores Arce, comunicadora: “Mídia incendiou a Bolívia com mentiras no golpe contra Evo”

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Análise é de Dolores Arce, chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) do Ministério da Comunicação do governo Morales

Por Leonardo Severo, do ComunicaSul

«Agora chega um governo e, em nome da liberdade e da democracia, em menos de uma semana tira do ar a TeleSul» / Leonardo Severo

Recém demitida, a chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) do Ministério da Comunicação do governo de Evo Morales, e ex-diretora-executiva do Centro de Educação e Produção Radiofônica da Bolívia (Cepra), Dolores Arce, denuncia como “a mídia local fez um despejo desinformativo, promovendo o motim da polícia e garantindo impunidade para que o Exército assassinasse manifestantes que lutavam por seus direitos”.

Condenando a mídia como “um dos pilares do golpe contra o governo constitucional”, ela recordou que “os canais de televisão começaram a ir ao conjunto das regiões para assediar os comandos militares, incendiando o país com mentiras”.

Nesta entrevista exclusiva, a profissional – referência na luta pela democratização da comunicação na América Latina –, criticou “as hordas fascistas pela queima de residências de autoridades, rádios e tribunais eleitorais, pelos sequestros e ameaças a familiares de dirigentes, formas com que conseguiram viabilizar o afastamento do presidente”. Dolores Arce recordou como o trabalho da rádio Soberania, dos camponeses, “foi fundamental na época da ditadura, nas denúncias contra a Drug Enforcement Administration (DEA), agência usada pelo governo dos Estados Unidos para supostamente combater o narcotráfico) e os leopardos (força policial paramilitar especializada, a Unidade Móvel Policial para Áreas Rurais), sendo a voz do setor”, trazendo à tona “os massacres dos governos neoliberais”.

A entrevistada lembra que Evo reconhecia a importância da comunicação desde a época em que era dirigente sindical e, de quando presidente, dos importantes investimentos realizados nas RPOs, vistos por ele como “instrumento de educação, informação e formação” da sociedade boliviana.

Entre outros pontos, Dolores Arce defendeu maior empenho coletivo para a vitória do Movimento Ao Socialismo (MAS) nas próximas eleições, um redobrado investimento na comunicação pública e sublinhou a “importante parceria com coletivos internacionais como o ComunicaSul para a denúncia e o acompanhamento da realidade boliviana, não permitindo que um governo ditatorial se cubra com um manto democrático”.

ComunicaSul: Fale um pouco sobre o incentivo dado pelo Estado Plurinacional à estrutura radiofônica com vistas à democratização da comunicação.

Dolores Arce: As Rádios de Povos Originários (RPOs) são um projeto comunicacional do Estado Plurinacional iniciado em 2006, quando o presidente Evo Morales assume e começam a ser instaladas emissoras por todo o país com o apoio público.

As primeiras 30 rádios, a nível nacional, se estruturaram com a contribuição solidária da Venezuela. Atualmente, são mais de 90 rádios. A diferença é que nunca antes o Estado boliviano, como governo, havia apoiado a criação de meios comunitários. Havia um meio oficial, que era a rádio Ilimani, depois Pátria Nova, e o Canal 7, agora Bolívia TV. Pensar em meios oficiais a partir das comunidades, este foi o aporte do Estado Plurinacional.

O projeto estava baseado em algum modelo?

Evo Morales tinha uma experiência prévia, no trópico de Cochabamba, onde era o dirigente máximo das seis federações de trabalhadores e sabia o que representava ter ou não um meio de comunicação. Possuía a Rádio Soberania, propriedade da Federação do Trópico, com o aporte dos produtores das folhas de coca. Eles tiveram a sua emissora, que fazia todo o acompanhamento do setor. Se havia uma marcha, ali estava a rádio, como quando ocorreram os massacres durante os governos neoliberais. Foi assim na luta contra a DEA e os leopardos. Esta rádio foi fundamental para as denúncias, era a voz do setor cocaleiro, a rádio Soberania.

Inspirada neste exemplo, quando chega ao governo Evo Morales impulsionou a criação de Rádios de Povos Originários, de rádios comunitárias, em estreita coordenação com as organizações sociais. Por isso há rádio nos nove departamentos com os indígenas, a Confederação Sindical Única dos Camponeses de Bolívia, o coletivo de mulheres Bartolina Sisa, Comunidades Interculturais… A implementação destas rádios foi feita com organizações sociais e equipamentos do Estado.

E os profissionais?

São selecionados pelas mesmas organizações, em 90% comunicadores empíricos, gente que nunca pisou numa universidade. O Ministério de Comunicação foi impulsionando processos de capacitação e formação para que estes trabalhadores adquirissem habilidades e conhecimentos desde o manejo dos equipamentos até como fazer uma entrevista, formatos jornalísticos, sempre trabalhando de maneira conjunta.

Quando estava no Centro de Produção Radiofônica da Bolívia (Cepra), impulsionamos processos de capacitação, com a escola de gestão pública plurinacional para a certificação por parte do Ministério da Educação formando mais de 200 comunicadores empíricos. É um reconhecimento a comunicadores que são em sua maioria bilíngues, falantes em quechua, aymara e guarani, dependendo do local de onde provêm. Tem esta habilidade fundamentalmente oral, por isso a rádio é intimamente ligada, é como um anel no dedo como ferramenta comunicacional, muito mais do que a imprensa escrita que requer mais estudos.

Eu diria que o jornal não deixa de ser uma expressão válida, obviamente, mas mais limitada às cidades, a um determinado setor que pode gastar dinheiro.

Além disso, a rádio tem um alcance massivo. Quem não tem um aparelho? A televisão é diferente e mesmo seu sinal muitas vezes nem chega à área rural. A rádio chega a todo lado e ela te acompanha, podes estar produzindo, arando no campo… A cultura oral fez com que a rádio seja muito mais que distração ou diversão, seja educação, formação, informação, esta é a fortaleza das rádios comunitárias.

E não vamos dizer que isso exista apenas a partir do governo de Evo, em todo o país já muito antes haviam jogado um papel nas minas, nos sindicatos mineiros, em toda a área rural com o movimento de camponeses. Há uma história muito vasta, resgatada e potencializada pelo governo de Evo Morales.

“As Rádios de Povos Originários foram uma grande contribuição do Estado Plurinacional para democratizar a comunicação e que teve uma resistência terrível dos donos da mídia”

É com o governo Evo que o Estado começa a dar voz aos movimentos sociais.

Sim, porque geralmente um sindicato não tem a possibilidade de adquirir equipamentos radiofônicos que custam US$ 50 mil, US$ 100 mil ou US$ 200 mil, conforme o tamanho da emissora. Então foi uma grande contribuição do Estado Plurinacional para democratizar a comunicação e que teve uma resistência terrível, horrível, dos donos da mídia. Os grandes proprietários sempre viram na democratização uma forma de pôr em risco o seu privilégio, o seu monopólio. O triste é que muitas rádios supostamente comunitárias, da sociedade civil, se colocaram em oposição à criação das RPOs, como se fossem um atropelo, como se por meio delas o Estado estivesse se imiscuindo, se metendo onde não deve. Não interpretaram pelo lado da democratização, mas de uma suposta dominação. Obviamente não é assim. Houve cegueira.

Na prática, como demonstraste, ao bater no Estado reproduziram os donos da mídia.

Recordo com um pouco de amargor destes acontecimentos. Temos na Bolívia a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), que existe em toda a América Latina. Evidentemente, o termo rádios comunitárias foi criado nos anos 50-60, muito antes do governo Evo. Então Evo também queria denominar rádios comunitárias às instaladas pelo governo, mas as filiadas à Amarc disseram que não poderiam se chamar assim, pois elas é quem eram as rádios comunitárias, como se tivessem patenteado o termo. Por isso as novas começaram a ser chamadas de Rádios de Povos Originários (RPOs), por uma briga sem sentido.

Acredito que se nos encontramos em um Estado que defende o interesse das maiorias, se tivéssemos nos articulado de maneira mais firme desde as próprias organizações, penso que agora teríamos mais armas para nos defender.

Agora, após o golpe, este governo tenta chamar-se de constitucional e quer banhar-se numa aparência democrática. O fato é que adota todos os procedimentos de força, com polícias e militares nas ruas, proibindo na prática a quem pensa diferente.

A censura é mais do que visível.

Há de tudo, desde a autocensura de muitos meios comunitários da sociedade civil que optaram por sair do ar, já que qualquer emissão contrária ao que diz o governo atual é tipificada de sedição e terrorismo, até os que optaram por apagar sua emissão pelo medo de serem acusados e criminalizados. Agora grupos minoritários, afins ao novo governo, estão queimando rádios, incendiando emissoras, e não há quem diga que isso é um atentado à liberdade de expressão.

É doloroso ver as federações de imprensa, a Associação Nacional de Imprensa, sem se pronunciarem, caladas diante desse atentado à informação, um direito que está constitucionalizado.

Porque nos 14 anos de governo de Evo Morales, a quem acusaram de ditador, de autoritário, etc, não se fechou a possibilidade da CNN difundir sua visão. Agora chega um governo e, em nome da liberdade e da democracia, em menos de uma semana tira do ar a TeleSul. A Empresa de Telecomunicações Boliviana (Entel), nacionalizada, foi assaltada, o canal de televisão Russia Today foi tirado do ar, o jornal Cambio foi “rebatizado” como Bolívia. Uma manipulação grosseira. É uma gente que tem medo dos que pensam diferente.

E projetam sobre Evo toda sua aversão à democracia.

O fato é que essa gente não admite um pensamento diferente do seu. O pior é que fizeram um trabalho minucioso durante anos nas redes sociais, através de meios de comunicação que nunca foram calados pelo governo de Evo Morales. E sustentaram durante anos o discurso de “Evo ditador”, “Evo corrupto”, “Evo qualquer coisa”, com acusações sem provas por meio das quais conseguiram gerar um sentimento de distanciamento em parte da opinião pública, de afastamento e, em alguns casos, até de rechaço.

E tudo o que ocorreu na campanha de mentiras da mídia ao longo do plebiscito sobre a possibilidade de reeleição, em 21 de fevereiro de 2016. Sendo autocríticos, não faltou uma mão mais firme para combater os excessos veiculados impunemente?

Totalmente. Creio que sim. O que houve por parte de Evo foi um respeito às liberdades, à Constituição política do Estado, que é negada agora pelos que dizem que vieram a defender a liberdade e a democracia. Os fatos demonstram exatamente o contrário, estão fazendo todo o oposto. Carlos Valverde [que inventou a existência de um filho pretensamente abandonado por Evo] mentiu e que sua mentira nas redes sociais, massificada pelos meios de comunicação, fez uma guerra suja por meio da qual conseguiu incidir no resultado do referendo [51,3% contra a reeleição a 48,7%].

A votação era no dia 21 de fevereiro e a campanha de mentiras iniciou no dia 9, há menos de duas semanas, conseguindo causar um escândalo. Esse mesmo senhor que diz ser jornalista e tem um passado muito nefasto como agente do Ministério do Interior, com papel em massacres, ligado ao narcotráfico, é filho de um dos paramilitares que em Santa Cruz fuzilou estudantes. Sua família tem um passado falangista. Esse homem que depois se autodenominou de “perseguido político”, hoje vive normalmente, não lhe passa nada, está completamente impune. Enquanto isso, qualquer um que tenha alguma afinidade com o governo de Evo Morales “que se cuide, estamos seguindo seus passos”. Este é exatamente o discurso da ministra da Comunicação.

Quando ainda estava no meu posto de chefe das Rádios de Povos Originários, dias antes do massacre de Sakaba, em Cochabamba [onde morreram dez pessoas e mais de 200 ficaram feridos, 80% à bala], fiz uma denúncia pedindo garantias às rádios Soberania e Kawsachun Coca, que estavam tendo seus equipamentos queimados e seus comunicadores perseguidos. A Kawsachun Coca, das seis federações de trabalhadores de coca, havia recebido um reforço em equipamentos do Ministério. A ministra justificou a perseguição a esta emissora dizendo que vem cometendo os delitos de sedição e terrorismo. Está buscando mecanismos para terminar de calar as rádios comunitárias.

Há casos de jornalistas que foram surrados e espancados, e inclusive um argentino, Sebástian Moro, que morreu devido à gravidade dos ferimentos. Acompanhaste algum problema como esse?

Infelizmente sim. Entre os comunicadores de Rádios de Povos Originários, que sempre trabalharam como organizadores, e o governo de Evo tivemos o caso de um companheiro que durante os bloqueios dos “cívicos” lhe revisaram o celular e a credencial, sendo barrado no caminho antes de chegar à emissora. Me chamaram às cinco da manhã, do celular do meu comunicador e, pensando que era ele, lhe digo: “Oi Samuel, como estás?”. Era um dos que lhe havia tirado o celular e que estava falando comigo, perguntando se eu era o seu chefe, quem e o que estava fazendo. Me disse que queria verificar quem era aquele que haviam barrado e respondi que trabalhava comigo no Ministério da Comunicação. Então este era o seu grande delito, por isso lhe haviam danificado a moto, quebrado seu espelho, jogado no chão o seu celular, seu instrumento de trabalho, que agora está imprestável. Tudo pelo simples fato de que era um comunicador do Estado e estava combatendo os ditos “cívicos”. Temos outros casos de comunicadores que passavam a ser insultados assim que eram identificados como ‘evista’ ou ‘masista’.

Da mesma forma que agiram contra a delegação argentina que veio avaliar a situação de direitos humanos?

Exatamente. O mais triste é esta maquinaria que instalaram na mente de algumas pessoas. Primeiro falam de fraude sem provas, porque se baseiam na Transmissão Rápida de Resultados Eleitorais Preliminares (Trep), não em números oficiais.

Podem obviamente haver atas com alguns erros, mas isso não vem de agora nem é exclusivo da Bolívia, é um erro humano, de somas, atas com algum problema, algo que indiscutivelmente é preciso melhorar. Mas estou absolutamente segura que não é nada que venha a alterar, nem de longe, o resultado. Pelo contrário.

“Foram os golpistas que venderam, divulgaram e conformaram há meses a ideia da fraude, trabalhando a mente das pessoas como se tudo fosse o resultado de uma armadilha”. Os mesmos que deram um sangrento golpe, com assassinatos, sequestros e prisões, vinham trabalhando há tempos a ideia da fraude. Foram eles que venderam, divulgaram, conformaram desde meses antes a ideia da fraude. Diziam e repetiam: “vai haver fraude, vai haver fraude”, trabalhando na mente das pessoas como se tudo estivesse devidamente planejado, como se tudo fosse o resultado de uma armadilha.

Então a mídia jogou um papel central no golpe.

Absolutamente. Porque a ideia de fraude foi incutida, trabalhada há meses. Os observadores internacionais e a OEA têm parâmetros de países diferentes, que não servem. Não conheço os do Brasil, mas talvez os parâmetros da cidade e do campo no seu país não sejam tão diferenciados como os nossos.

No Brasil temos diferenças bem significativas nos padrões eleitorais entre as regiões Sul e Nordeste, por exemplo.

Segundo observaram, havia uma tendência eleitoral e ela começou a mudar. Conforme disseram, isso era o maior indício de fraude. Eu te digo com conhecimento de causa, pois coordenei dez anos um trabalho sobre o tema, antes era a Corte Departamental Eleitoral e depois o Tribunal Departamental Eleitoral. Trabalhávamos com o Centro de Produção Radiofônica a partir de uma linha chamada “Cidadania”, “Direito à Identidade”, e apoiávamos em campanhas o acesso da população excluída, o acesso à cédula para que pudesse votar.

Aí trabalhamos desde pelo menos 1999 até 2019, foram vinte anos em que estive pessoalmente fazendo o acompanhamento dos processos eleitorais. Por isso sei que no dia primeiro, quando podes contabilizar as atas das cidades mais próximas, isso chega rápido para a contagem, isso está a meia hora, uma ou duas de distância. Então às oito da noite já tens esses votos para contabilizar. Esta primeira publicação de resultados é, sobretudo, o panorama das capitais, onde sabemos que as classes médias e altas têm, com todo direito, sua opinião e que costura ser mais desfavorável ao MAS. Em Cochabamba, por exemplo, digamos que 45% dos votos são para o MAS e 55% para os demais partidos. Acontece que no dia seguinte começam a chegar os votos das cidades interioranas e das áreas rurais, e a situação se inverte, com o MAS sendo amplamente majoritário. Em Cochabamba a diferença chegou a ser de dez pontos para o primeiro resultado, e em províncias distantes, como o Chapare, como a zona andina, em que os resultados chegavam até dois dias depois, o MAS alcançava 80, 90 até 95%. Portanto é óbvio que a tendência mude. Isso não é estranho, é o real. Cochabamba é um dos departamentos em que o “voto duro”, o voto fechado no MAS, é mais contundente.

A nível nacional esta variação costumava ser de 5%, enquanto em Cochabamba era de 10% entre a primeira e a última publicação. Por isso para mim não era nada surpreendente que, à medida em que chegavam os votos das urnas mais distantes, Evo sempre vencesse com maior diferença, porque seu nome é a referência. Porque foi Evo quem mudou a realidade da área rural, não os neoliberais. Agora querem fazer crer que é algo suspeito, estranho, quando não é. O presidente falou: falta esperar o resultado que vem do campo. Isso não é manipulação, não é fraude, é o real.

Evidentemente, e não vamos negar, e precisamos ter uma atitude autocrítica, é que nas eleições de 2014 tivemos uma vitória contundente, com mais de 60%, que não deixou margem a dúvidas, foi indiscutível. Nesta, a vitória foi de 10,57%. E com erros e o que seja, com uma vitória ao redor de 10%, o MAS obteve quase dois milhões e novecentos mil votos. Mesmo com duzentos mil votos de erros, fraude, o que eles chamem, ninguém vai negar que chegamos bem à frente, pois quem o segue, o Comunidade Cidadã, tem dois milhões e duzentos e cinquenta mil. Não vamos dizer que é desprezível, é uma boa votação. Mas, seguramente por nossos próprios erros, desgastes, o que queiras, mesmo assim há mais de meio milhão de votos de diferença. Então, tratar o MAS como o que perdeu, como o bandido da história, é uma falsidade. Querem mostrar o ganhador como o perdedor. Eu me sinto indignada porque o meu voto não foi respeitado, nem o voto dos meus irmãos, de meus companheiros.

A mídia agiu para reverter o quadro. Se deram ao luxo de realizar 20 horas de manipulação num único dia. Transmitiram das seis da manhã até a meia noite durante quase duas semanas, quando estouraram os conflitos nas cidades, paralisadas pelos bloqueios cívicos, que não permitiam o ingresso das pessoas do interior, não permitiam a circulação. Esta agressão era mostrada pelos meios de comunicação como uma grande luta democrática.

Muitos prefeitos, deputados e governadores foram perseguidos e espancados, tiveram suas residências queimadas, filhas estupradas e famílias ameaçadas. Mas a mídia ocultou este comportamento fascista.

Exatamente. Vou te dar um exemplo concreto. Dos nove departamentos, Beni é um em que a disputa é bastante acirrada, quase meio a meio, onde ganhamos o governo por muito pouco em 2015, porém em muitas prefeituras, mais no interior, o MAS ganhou de forma bem contundente.

Nesta última eleição, dos 12 mil votos do município de San Borja, 8 mil foram para o MAS e 4 mil para os outros partidos. Resulta que, com o golpe cívico-policial-militar-midiático, essa minoria de 4 mil votos, juntamente com delegados dos Comitês Cívicos de Santa Cruz, somados a jovens que se deslocaram de outros departamentos, que são como paramilitares, hordas fascistas que vão amedrontando as pessoas, ocuparam a rádio RPO, que estava na Federação Camponesa, e impõem um diretor de sua linha, agora fascista. O prefeito, eleito com dois terços dos votos, é ameaçado e obrigado a renunciar. É isto o que está ocorrendo em todo o país, com as minorias se sentindo capazes de intimidar e impor, jogando para desmoralizar os masistas, que são retirados das funções públicas. O argumento dessa gente é que a OEA teria comprovado que houve fraude e que, portanto, o MAS não tem mais condições de governar. Os fascistas estão nos roubando o governo, assaltando a administração pública.

E o discurso fascista vai se adaptando às circunstâncias, na tentativa de emplacar seu golpe.

Inicialmente seu discurso era que a nova presidenta ficaria até 22 de janeiro, com o pretexto de prazos, de que necessitariam mais tempo para eleger novos juízes eleitorais… Na prática, foram eles que queimaram cinco tribunais eleitorais, onde não há um único computador, não há nada. Desta forma foi com que construíram o discurso, criaram as condições para dizer que necessitam mais tempo.

Para que mais tempo? Para desfazer-se do Estado, desbaratar as políticas implementadas por Evo, assaltar as empresas públicas e colocar sua gente, pessoas que apoiaram esse golpe para a privatização. Tudo sob o manto da democratização, com a fala de que havia muita corrupção. O discurso, muito agressivo e sem qualquer prova, é que Evo roubou, que houve desvio, malversação de milhões. Não há provas, não há sequer um processo de investigação, mas geram uma psicose de má manipulação de recursos, de suposta fraude por parte do governo de Evo.

Pude comprovar que é exatamente esse discurso dia e noite o que está estampada nas bancas de jornais, o que se vê na televisão e ouve nas rádios. Há uma uniformidade no discurso.

Te digo como funcionária pública. No dia 10 de novembro Evo se viu forçado a renunciar. No dia 11 havia um vazio de poder e já no dia 12 de novembro Jeanine Áñez se autoproclama presidenta, com um Congresso vazio, pois não estavam presentes os dois terços dos nossos senadores e deputados. Na verdade nada disso foi real pois o Congresso precisaria ter sido convocado, a Assembleia Legislativa Plurinacional precisaria ter sido convocada, os parlamentares terem aceito a renúncia para que a porta constitucional fosse aberta. Nada disso ocorreu. Isso tudo foi na terça-feira, 12. Dois dias depois, na quinta-feira, 14 de novembro, a destituição alcança os 20 ministérios, e seguramente toda a administração pública, com todos nós, funcionários, colocando os cargos à disposição. Não digo que todos os chefes. Eu ia renunciar a minha chefatura caso não me tirassem, mas a nível de funcionários, todos saíram, desde o porteiro até o chofer, secretário, mensageiro, técnico…

E teve início o chamado “massacre branco”, uma vez que os golpistas estão dando uma “outra cor ao Estado”, substituindo os funcionários de cara, de roupa e de hábitos indígenas.

Um massacre branco. Porque estão acomodando gente que, segundo eles, há lutado pela democracia. Jovens que cercaram as praças principais em La Paz, que te revistavam o celular e vasculhavam tua carteira para saber se tinhas algo a ver com o MAS, para dizer se podias ou não passar. Estes tipos que cercaram a população e as cidades, agora, com listas nas mãos, vão até os ministérios exigir seu pagamento, que é o seu posto, sua colocação.

De que constitucionalidade estamos falando se este é um governo de transição? De que legitimidade estamos falando se houve a renúncia forçada de Evo? Uma renúncia com base no sequestro de irmãos de deputados, no incêndio de casas de parlamentares e governantes? Da mesma forma um senador de Potosi e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra, a quem lhe correspondia a Presidência da República, pressionaram com o argumento de que tinham em suas mãos um sobrinho? Neste contexto mandaram assaltar a irmã de Adriana Salvatierra, a quem retiraram o seu celular e estava incomunicável. Disseram que estavam com o seu sobrinho e ela abriu mão da presidência do Senado. Esta é a informação que nos chegou. Desta forma não havia as pessoas para a sucessão constitucional e eles, assim que assaltaram o poder, começaram a repartição da função pública com o afã de ficar para além dos três meses iniciais.

Se este governo é de transição deveria tão somente se limitar a chamar ao diálogo e a preparar as eleições, mas é lógico que não é isso o que está colocado. Porque dois dias depois que assumem, e os servidores colocam seus cargos à disposição, colocam um decreto que garante impunidade aos militares. Com que objetivo? Isso obviamente é planificado. Para que os militares pudessem massacrar impunemente, matar sem consequência para os assassinos. Se fosse um governo de transição porque iria querer privatizar? Por que já abriria para a ação de um embaixador dos Estados Unidos, por que restabeleceria relações e colocaria um embaixador de Israel? Essa gente se deu ao luxo de sair da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), de mudar a política externa num passe de mágica.

Neste contexto de intensa luta política e ideológica se inserem as ameaças à imprensa. Qual é a importância da solidariedade e da presença da mídia internacional?

Mais do que em qualquer outro, neste momento a presença da mídia internacional faz toda a diferença. Porque parte da mídia nacional está sendo cúmplice do golpe, cooptada. Pior, de forma voluntária é parte deste golpe. Ao mesmo tempo existe contra os meios alternativos, comunitários, um nível de ameaça, de perseguição e de violência que somente lembro de ter visto nas ditaduras.

Recordo das ditaduras de René Barrientos (1964-1969), Hugo Bánzer (1971-1978) e de García Meza (1980-1981). Na de Barrientos houve o assalto às rádios mineiras, a queima de equipamentos, o assassinato de comunicadores. Lembro quando os governos de Barrientos, Banzer e García Meza praticavam as maiores atrocidades. Agora vão além falando supostamente em nome da liberdade, da democracia, e até em nome de Deus, agarrando a Bíblia.

Neste contexto a mídia internacional é nossa garantia. Porque não podemos dizer que não vão nos tirar do ar a todos os meios de comunicação. É como lutar contra a mentira desde dentro.

Assim como fizeram um despejo desinformativo de 20 horas nos dias mais críticos, o motim da polícia foi promovido pela mídia. Os canais de televisão começaram a ir ao conjunto das regiões para assediar os comandos militares, perguntando e incentivando: “Vocês não estão amotinados, o que falta, já estão prontos?”. A mídia incendiou o país durante 24 horas. Porém assim que toma posse essa autoproclamada presidenta, de repente, a programação muda e volta à normalidade.

Há os massacres em Senkata, em Cochabamba, e há o incômodo com os moradores das províncias de El Alto, que chegam à cidade, essas pessoas são reduzidas a vândalos, saqueadores, hordas masistas. Mas quem teve suas casas queimadas? Queimar os tribunais eleitorais, a casa do governador de Oruro, do deputado de Potosi, da irmã do presidente, isso tudo não era delito.

Meios de comunicação como Opinião, um jornal supostamente de renome, falou sobre o roubo de a casa que um irmão do presidente Evo tem aqui em Cochabamba. Nesta campanha, dá a entender da existência de muitas versões. E o jornal diz que deve ter sido feita uma autodestruição para vitimizar-se, que o presidente, assim que saiu, havia dado essa ordem a seus guardas. Francamente, é decepcionante. Não encontro a palavra para expressar a indignação que causa o comportamento destes meios, especialmente de emissoras de rádio e televisão que tanto se aproveitaram durante o governo Evo. Eles não só se beneficiaram da publicidade como tiveram ampliada a vigência da licença de funcionamento até o ano 2034. Eu sempre estive contra essa política, o resultado aí está.

Quais devem ser os próximos passos e como posicionar os comunicadores na luta contra essa ditadura?

Creio que há vários passos que nos esperam. Primeiro. a nível orgânico do MAS necessitamos voltar às bases, como dizemos. Precisamos ter um espaço de análise, de reflexão, de autocrítica. Porque tampouco seria correto dizer que não cometemos erros. E a comunicação é chave.

Temos de defender o que são os nossos meios, que custaram sangue das organizações populares. Tivemos a oportunidade de o Estado ter feito durante 14 anos um acompanhamento das organizações sociais e da comunicação desde as organizações. Temos que lutar para defender este avanço, mas lamentavelmente notamos que a vontade política do novo governo é o oposto, ao revés.

Eu diria que devemos passar à resistência, mas nos organizando com vistas às eleições. E aí a comunicação vai jogar um papel importante. Primeiro há uma comunicação que vai além dos meios, que se dá nas reuniões ampliadas, nos coletivos, precisamos voltar ao trabalho porta a porta, a uma comunicação desde abaixo. Porém necessitamos aliados e aí a imprensa internacional, e um coletivo como o ComunicaSul, contribuirá significativamente para a denúncia e o acompanhamento da realidade boliviana, não permitindo que um governo ditatorial se cubra com um manto democrático.


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