O trabalhador indígena e a renovação da esquerda: uma conversa com Álvaro Garcia Linera – Por Marcello Musto

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Por Marcello Musto

Nascido em Cochabamba em 1962, Álvaro Garcia Linera era muito jovem quando se aproximou do marxismo e das lutas do povo Aymara. Já no México, para onde se mudou e se formou em matemáticas no início dos anos 1980, foi influenciado pelos movimentos de guerrilha na Guatemala que lutavam pela causa da população indígena. Após regressar à Bolívia, tornou-se um dos fundadores do exército de guerrilha Túpac Katari, uma organização política que juntava a luta de classes marxista com os princípios Kataristas a favor da emancipação indígena.

Esteve preso numa cadeia de segurança máxima entre 1992 e 1997 e foi ensinar sociologia, tornando-se um intelectual influente. Linera aderiu depois ao Movimento pelo Socialismo (MAS) de Evo Morales e é desde 2006 vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia. Ele é uma das vozes mais originais da esquerda latino-americana, cujas obras incluem Forma Valor e Forma Comunidade (1995) e A Potência Plebeia (2008). A nossa conversa centrou-se na situação das forças progressistas nesta e noutras partes do mundo.

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Marcello Musto: O seu compromisso político é marcado pela consciência de que a maioria das organizações comunistas da América Latina não foi capaz de dirigir o seu discurso para o conjunto das classes populares, acabando por ocupar pouco mais do que o lugar de observadores. Na Bolívia, por exemplo, essa dependência em relação ao marxismo-leninismo mais esquemático e economicista impediu-as de reconhecer a especificidade da questão indígena e colocá-la no centro da sua atividade política. Viam os povos nativos como uma massa indiscriminada de camponeses pequeno-burgueses com nenhum potencial revolucionário. Como é que chegou à conclusão de que era necessário construir algo radicalmente diferente da esquerda que existia naquela altura?

Álvaro Garcia Linera: Na Bolívia, a alimentação era produzida por agricultores indígenas, as casas e edifícios eram construídos por trabalhadores indígenas, as ruas eram limpas pela população indígena e a elite e as classes médias confiavam-lhes os cuidados das suas crianças. No entanto, a esquerda tradicional era cega em relação a isto e preocupava-se apenas com os trabalhadores da grande indústria, não prestando atenção à sua identidade étnica. Embora fossem importantes no trabalho nas minas, eram uma minoria em comparação com os trabalhadores indígenas, que eram discriminados e explorados com ainda maior severidade. A partir do final dos anos 1970, a população Aymara organizou grandes mobilizações contra a ditadura, bem como os governos democráticos que surgiram depois dela. Fê-lo orgulhosamente com a sua língua e simbologia própria, funcionando através de comunidades federadas de campesinos e acelerando o nascimento de uma nação sob liderança indígena. Foi um momento de descoberta social.

Como reagiu a isso?

Eu andava na escola nessa altura e essa insurgência índia causou em mim grande impacto. Parecia evidente que o discurso da luta social na esquerda clássica, centrado apenas nos trabalhadores e nos burgueses, era parcial e insustentável. Teria de incorporar os assuntos indígenas e refletir sobre a comunidade agrária e a propriedade coletiva da terra como a base para a organização social. Além disso, para percebermos os homens e mulheres que eram a maioria do país e exigiam uma história e um lugar diferente no mundo, era necessário aprofundar o aspeto étnico-nacional do problema dos povos oprimidos. E para isso o esquematismo das cartilhas marxistas parecia-me completamente inadequado. Isto levou-me a uma busca por novas referências, desde o catálogo de ideias Indianistas até Marx, cujos trabalhos sobre lutas anticoloniais e a comuna agrária na Rússia tinham enriquecido a sua análise das nações oprimidas.

Com o passar do tempo, a complexidade do tema da transformação social — que era tão importante no seu pensamento e atividade política — tornou-se uma questão essencial para todas as forças progressistas. Com o desvanecer da visão do proletariado enquanto única força capaz de derrubar o capitalismo, e com a dissolução do mito da vanguarda revolucionária, qual deve ser o novo ponto de partida para a esquerda?

O problema para a esquerda tradicional é que confundiu o conceito de “condição proletária” com uma forma histórica específica de trabalho assalariado. A primeira alastrou a todo o lado e tornou-se uma condição material generalizada. Não é verdade que o mundo do trabalho esteja a desaparecer — nunca houve tantos trabalhadores no mundo, em todos os países. Mas este crescimento gigantesco da força de trabalho mundial aconteceu numa altura em que as estruturas políticas e sindicais existentes entraram em rotura. Mais do que em qualquer outra altura desde o início do século XIX, a condição da classe trabalhadora é novamente uma condição do, e para, o capital. Mas agora numa forma em que o mundo dos trabalhadores se tornou mais complexo, híbridizado, nómada e desterritorializado. Paradoxalmente, numa época em que todos os aspetos da vida humana foram mercantilizados, tudo parece acontecer como se já não houvesse nenhum trabalhador.

Qual é a natureza das lutas sociais hoje em dia? As dificuldades que enfrentam as organizações políticas e sindicais para organizar trabalhadores precários e migrantes são assim tão diferentes daquelas que existiam na altura da produção fordista do século XX?

A nova classe trabalhadora não está principalmente unificada em torno de temas laborais. Ainda não tem a força para o fazer, e talvez não a venha a ter ainda por muito tempo. As mobilizações sociais já não acontecem através das formas clássicas de ação centralizada da classe trabalhadora, mas sim através de misturas de diferentes setores, temas intersetoriais e formas flexíveis, fluidas e mutáveis. Estamos a falar de novas formas de ação coletiva lançadas pelos trabalhadores, mesmo que em muitos casos o que vem à superfície não é tanto uma identidade laboral, mas outros temas complementares como conglomerados territoriais ou grupos que reivindicam acesso à saúde, educação ou transportes públicos.

Em vez de reprovarmos essas lutas porque as suas formas se distinguem das do passado, a esquerda deve estar atenta a este hibridismo ou heterogeneidade — acima de tudo para entender as lutas existentes e articulá-las com outras à escala local, nacional e internacional. O tema da mudança ainda é o “trabalho vivo”: trabalhadores que vendem a sua força de trabalho de muitas maneiras. Mas as formas organizativas, os discursos e identidades são muito diferentes das que conhecemos no século XIX.

Por entre a complexidade social dos nossos tempos, acha que é necessário repensar o conceito de classe?

Classes, identidades, coletivos mobilizados não são abstrações: são formas de experiência coletiva no mundo, construídas em larga escala. Tal como assumiram formas pontuais há cem anos, fazem-no agora de novo através de caminhos e de causas imprevistas e por vezes surpreendentes e muito diferentes das do passado. Não devemos confundir o conceito de classe social — uma maneira de classificar estatisticamente a população com base na sua propriedade, recursos, acesso à riqueza, etc. — com as formas atuais como elas se juntam através de afinidades eletivas, locais de residência, problemas comuns e características culturais. Este é o verdadeiro movimento da construção mobilizada de classes, que apenas coincide excecionalmente com as convergências exibidas nos dados estatísticos.

Cita frequentemente Antonio Gramsci. Qual a importância que o pensamento dele teve nas suas escolhas políticas?

Gramsci foi decisivo para o desenvolvimento do meu próprio pensamento. Comecei a lê-lo quando era muito jovem e as suas obras circulavam entre um golpe de estado e outro. Desde então, ao contrário de tantos textos com análises economicistas ou formulações filosóficas centradas mais na estética das palavras do que na realidade, Gramsci ajudou-me a desenvolver uma maneira diferente de ver as coisas. Ele falava de temas como a linguagem, literatura, educação ou senso comum, que embora pareçam secundários formam de facto a rede da vida no dia-a-a-dia dos indivíduos e determinam as suas perceções e inclinações políticas coletivas.

Desde esses tempos de juventude tenho regressado frequentemente à leitura de Gramsci e ele tem sempre algo novo a revelar-me, em especial no que respeita à formação molecular do estado. Estou convencido que Gramsci é um pensador indispensável para a renovação do marxismo no mundo de hoje.

Das suas palavras parece óbvio que a maneira como se relaciona com Marx — que conhece bem e sobre o qual escreveu tanto — é muito diferente da do marxismo soviético. Acha que recorrer ao Marx das questões e dúvidas, que se encontra nos manuscritos inacabados dos seus últimos anos, pode ser hoje mais frutífero do que nas afirmações contidas nos seus livros e folhetos publicados?

A cartilha marxista sempre me pareceu desadequada. Por isso, tomei a iniciativa de examinar autores inspirados pela ideologia indigenista, bem como outros autores marxistas ou o outro Marx que me falava de identidades sociais híbridas. Desta maneira, descobri um Marx que me ensinou acerca das lutas coloniais, que falava das comunidades agrárias, que continuava a tentar encontrar fundamentos sólidos para o tema das nações oprimidas — um Marx à margem, mais plural e mais cheio de perguntas do que de respostas. Foram essas perguntas que me permitiram, ao longo dos anos, fazer uma leitura diferente dos Grundrisse, dos Manuscritos de 1861-1863 e do Capital, encontrando aqui elementos da lógica genética do capitalismo que outros autores, antes e depois de Marx, não conseguiram compreender.

Nos últimos quatro anos, em quase toda a América Latina, chegaram ao poder governos que se inspiraram em ideologias reacionárias e procuram voltar a impor uma agenda económica neoliberal. A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil é o caso mais flagrante. Esta viragem à direita irá durar muito tempo?

Penso que o grande problema para a direita global é que não tem narrativa para o futuro. Os estados que pregavam a liturgia do mercado livre estão agora a construir muros contra os imigrantes e as mercadorias, como se os seus presidentes fossem os senhores feudais dos tempos modernos. Os que exigiam privatizações recorrem agora ao mesmo estado que vilipendiavam, na esperança de que os salve do fardo das dívidas. E os que defendiam a globalização e falavam de um mundo que seria por fim único agarram-se agora ao pretexto da “segurança continental”.

Vivemos numa sociedade de caos planetário, onde é difícil prever como se vão parecer no futuro as novas direitas latino-americanas. Irão optar pela globalização ou pelo protecionismo? Seguirão políticas de privatização ou intervenção estatal? Eles próprios não sabem as respostas a estas perguntas, uma vez que navegam num mar de confusão e apenas podem expressar visões de curto prazo. Essas forças da direita não representam um futuro no qual a sociedade latino-americana possa confiar as suas expetativas a longo prazo. Pelo contrário: elas trazem um aumento das injustiças e desigualdades. O único futuro tangível que conseguem oferecer às novas gerações é um futuro de ansiedade e incerteza.

Em muitas partes do mundo, a queda acentuada dos partidos políticos tradicionais vai a par do crescimento de novas forças políticas que, sob diversas formas, desafiam a globalização neoliberal e a ordem vigente. O “livre mercado” já não é visto como sinónimo de desenvolvimento e democracia, como era erradamente após a queda do Muro de Berlim, e o debate sobre alternativas ao capitalismo está de novo a despertar um grande interesse. O que é que a esquerda latino-americana deve fazer para mudar as coisas e abrir um novo ciclo de envolvimento político e emancipação?

Existem condições para o desenvolvimento de uma nova fase progressista que vá além do que foi conseguido na última década, Neste contexto de enorme incerteza, há espaço para propostas alternativas e um rumo coletivo para novos horizontes, fundados no envolvimento real das pessoas e na superação (ecologicamente sustentável) das injustiças sociais.

A grande tarefa para a esquerda conseguir ultrapassar os limites e os erros do socialismo do século XX é traçar um novo horizonte que dê soluções para as questões que hoje em dia causam sofrimento ao povo. Isso serviria um novo “princípio esperança” — qualquer que seja o nome que lhe dermos — que promulgue a igualdade, a liberdade social e os direitos e aptidões universais como base para a autodeterminação coletiva.

*Marcello Musto é Professor Associado de Teoria Sociológica na Universidade de York, em Toronto, no Canadá. *Publicado originalmente em esquerda.net


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