Entrevista a Lula: «Precisamos recuperar el espíritu rebelde del pueblo»

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«Precisamos recuperar o espírito rebelde do povo», diz Lula ao BdF; leia na íntegra

Quarta-feira, dia 23 de outubro. A placa localizada dentro da Vigília Lula Livre, a poucos passos da sede da Polícia Federal em Curitiba (PR), indica: 564 dias de resistência. É o número de dias que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontra privado de liberdade, em um processo que ele afirma diversas vezes ser “mentiroso” e que foi protagonizado pelo juiz Sérgio Moro e pelo procurador Deltan Dallagnol, famoso por seu power point.

A equipe do Brasil de Fato solicitou esta entrevista há pouco mais de seis meses. Após a autorização da juíza Carolina Lebbos, que assumiu o lugar de Moro e reiterou a sentença dada por ele, Lula decide com quem quer falar. Para entrar no prédio da Polícia Federal – que, por ironia, foi construído e inaugurado durante o governo petista –, são necessários cadastros, revistas de equipamentos e pontualidade. Lula fica em uma cela individual, de onde estabelece sua rotina de exercícios e leituras.

O encontro com o ex-presidente, que durou duas horas, ocorre no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma a sessão de julgamento sobre as prisões em segunda instância, sem que estejam esgotados todos os recursos disponíveis ao réu. O resultado da sessão define o futuro de Lula e de outros 5 mil presos no Brasil. Para o ex-presidente, a tarefa dos ministros do STF é garantir o que consta na Constituição. “Por isso que eu estou tranquilo com a votação na Suprema Corte. O que eles estão votando não diz respeito a mim, diz respeito apenas a cumprir a Constituição brasileira”, disse ao introduzir a entrevista.

Lula diz não criar expectativas sobre sua liberdade a partir da decisão do Supremo – pois Lula já vivenciou outros momentos de quase saída da prisão –, mas o ex-presidente se permitiu apontar algumas projeções para um futuro livre. Disse que irá casar novamente, que pensa em mudar de cidade e que pretende conversar com toda a população brasileira. “Eu quero viver. Eu espero que o PT me utilize, espero que a CUT me utilize, espero que os sem-terra me utilizem, espero os LGBTs me utilizem, espero que os quilombolas me utilizem, espero que as mulheres me utilizem, espero que todo mundo me utilize para fazer com que eu tenha utilidade na minha passagem pelo planeta Terra”, propõe.

É unanimidade entre todos que o visitam que ele se demonstra forte e altivo, mas fala com indignação daqueles que protagonizaram sua prisão. Neste domingo (27), Lula chegará aos 74 anos ali, na sede da Polícia Federal. “Eu estou triste por estar aqui, mas feliz por ter tantos amigos do lado de fora, tanta gente solidária. E a única coisa que eu gostaria era que as pessoas não deixassem destruir o país. Não há presidente que seja eleito para destruir o país, não há.”

Lula, assim como todo ser humano, tem suas contradições e complexidades. O que é inegável, é o protagonismo dele na história da política brasileira. Mesmo preso, causa barulho, inspira, e representa uma ameaça a alguns setores.

Sobre a Vigília Lula Livre, que foi montada no mesmo dia em que foi preso, Lula não conseguiu verbalizar a gratidão. Parece impossível para ele mensurar o que significa ter pessoas que, diária e religiosamente, o desejam bom dia, boa tarde e boa noite, e que, em paralelo, constroem um processo de formação, resistência e luta, logo ali do outro lado da rua.

Antes mesmo de começar a entrevista, o ex-presidente dava o pontapé inicial sobre o julgamento no STF, que se iniciava naquele mesmo horário. Depois disso, reforma agrária, desmonte das políticas públicas, Previdência, soberania, desafios da esquerda, vida, livros e cultura foram temas da nossa conversa.

Abaixo, a íntegra da entrevista.

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu já disse outro dia em uma entrevista para um amigo, que esse processo da segunda instância tem a ver com a Constituição brasileira. A Suprema Corte vai decidir se ela vai cumprir a Constituição ou não vai cumprir. Esse não é o meu processo. Eu não estou preocupado com a segunda instância. Eu vou repetir o que eu disse: se o cidadão roubou, ele tem que ser preso na primeira, na segunda, na terceira, na quarta, na quinta, basta que tenha prova de que ele roubou. Agora, se o cidadão é inocente, ele tem que ser libertado. A minha briga não é por segunda ou terceira instância, a minha briga é: eu quero que seja julgado o mérito do meu processo. Se encontrarem um milímetro de prova de crime que eu cometi, eu tenho que ser preso, mas se não encontrarem, prendam quem mandou me prender e me libertem.

Essa é a minha briga e eu vou brigar até o fim, não sei quanto tempo ainda eu tenho, vou completar 74 anos domingo [27]. Mas vou brigar até os últimos dias da minha vida para que este país não tenha juiz, não tenha procurador, não tenha delegado que haja com mentiras e contando inverdades para o povo brasileiro. Essa é a briga e, portanto, vocês saibam que eu quero a minha inocência. É por isso que eu digo: eu não troco a minha dignidade, pela minha liberdade. Andar de cabeça erguida, aqui dentro ou lá fora, vale mais do que andar de cabeça baixa lá fora. Então, pra vocês saberem, que eu estou muito tranquilo e sei bem o que eu quero.

Sei bem o que fizeram comigo e sei bem a tentativa de manter a mentira viva. Quando eu assisto a [Rede] Globo [de Televisão], ela tem horror que seja entendido pela sociedade brasileira as denúncias feitas pelo The Intercept [site que revelou mensagens entre Moro e Dallagnol, as quais comprovam manobras para incriminar Lula]. Se ela puder jogar embaixo do tapete todas as denúncias do The Intercept, que mostram a verdade, que mostram quem é o Moro, o Dallagnol, que mostra a lógica dos processos que eles fizeram. A Globo sabe que a mentira foi tão grande que ela ficaria desmoralizada. Então ela tentar evitar que as pessoas tenham acesso.

A minha disposição é provar que a Globo é mentirosa, que o Moro é mentiroso, que o Dallagnol é mentiroso, que o delegado que fez o inquérito é mentiroso. A minha lógica é essa. Com muita tranquilidade, sem nenhum rancor. Eu sou um Dom Quixote à procura da verdade.

Brasil de Fato: O senhor falou inúmeras vezes que não abre mão da sua dignidade por sua liberdade e que quer provar a sua inocência. Essa é uma decisão que é tomada diariamente, em todos os tipos de ações. A gente pode imaginar o tanto de pressão que é exercida sobre a sua liberdade. O que está na balança? Quais são os sacrifícios diários para tomar essa decisão?

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu fui criado por uma mãe analfabeta. A minha mãe morreu sem saber fazer um «O» com um copo. Meu pai morreu analfabeto. Mas tem uma coisa que eu aprendi com eles que é ter honradez. Esse negócio de honra, caráter, autoestima, é uma coisa que está no sangue da gente. É uma coisa que se aprende desde pequeno. Eu não nasci pra andar de cabeça baixa. Como eu tenho consciência da mentira que foi contada, eu tenho consciência do desserviço ao país que esse Dallagnol prestou com aquele power point. Eu tenho consciência das mentiras que o Moro contou na sua sentença. Um juiz que vai julgar um cidadão por crime indeterminado, ou seja, ele não sabe o que eu fiz de errado, mas tem que condenar, porque é preciso condenar, o momento político exige a minha condenação. Eu tenho consciência de que eles mentiram para a sociedade brasileira e essa mentira foi compactuada em um acordo feito entre o Moro e a imprensa brasileira. Quando você lê um artigo produzido em 2004, chamado Mani Pulite, em que ele fala da Operação Mãos Limpas na Itália, ele entrega para a imprensa o papel principal de condenar as pessoas. Ou seja, se um cidadão que ele [Moro] suspeita for julgado anteriormente pela imprensa, na hora de prestar a sentença, o cidadão já está condenado. Eu resolvi enfrentar isso. Resolvi enfrentar pelo nome que eu tinha, pela minha relação com a sociedade brasileira.

Eu não podia permitir que mais de 200 horas de Jornal Nacional contra mim, mais de 150 capas de revistas contra mim, mais de milhares de primeiras páginas de jornal contra mim, eu não poderia permitir acabar com a minha vida política, acabar com a minha relação com a sociedade, sendo chamado de ladrão pelos ladrões.

Eu resolvi reagir. Eu já disse outras vezes: eu poderia não estar no Brasil, eu poderia estar em uma embaixada, mas eu resolvi vir pra cá porque eu não provaria a minha inocência se eu não estivesse aqui. Aqui, brigando, de cabeça erguida. Eu estou falando com você [repórter] aqui, mas olha a cara do Moro nas entrevistas que ele dá. Ele sabe que ele é mentiroso. Ele não tem nem coragem de olhar na cara das pessoas. Olha pra esse Dallagnol, que, na verdade, montou uma quadrilha com essa força-tarefa [da Lava Jato]. Ele queria ficar rico. Ele queria pegar dinheiro da Petrobras para criar um instituto. Para fazer o quê? É contra isso que eu me insurgi. E foi contra isso que eu tomei a decisão de que o lugar que eu deveria estar é Curitiba. Vão me prender aqui um ano, dois anos, não tem problema nenhum. Eu tenho paciência. Mas o que eu quero é o seguinte: eu aprendi a andar de cabeça erguida e não baixo a minha cabeça. Eu sou igual a qualquer brasileiro. Se eu cometi um erro, eu tenho que pagar.

Todos que cometem erro tem que pagar. Por isso que eu estou tranquilo com a votação na Suprema Corte. O que eles estão votando não diz respeito a mim, diz respeito apenas a cumprir a Constituição brasileira. Está escrito lá que a pessoa só pode ser presa se for condenada depois de o processo passar por todas as instâncias. Então, como era o Lula que estava em julgamento, como tinha eleição para presidente, como o Lula poderia ganhar as eleições, eles pensaram: “Vamos fazer no caso do Lula uma coisa excepcional. Vamos julgar rapidamente”. Não é apenas o Moro, o Dallagnol, não é apenas o delegado que fez o inquérito, os desembargadores do TRF4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região], em Porto Alegre, nem leram o processo e votaram. Votaram pela condenação.

Acha que eu posso aceitar alguém falar: «Não, o presidente já cumpriu um ano e meio, ele vai ter progressão de pena». Não. Progressão de pena é pra ladrão. Progressão de pena é para culpado. Eu quero a minha inocência. Eu quero o julgamento do mérito do meu processo. É assim que está dito o jogo e é assim que que vou jogar. Eu não sei o que vai acontecer, mas essa gente tem que saber que no Brasil ainda tem gente de caráter. Essa gente tem que saber que nenhum deles é melhor do que eu. Essa gente tem que saber que nenhum deles é mais honesto do que eu. Essa gente tem que saber que eu tenho, só de política – eu comecei isso em 1969, eu tinha 24 anos de idade –, então eu tenho 50 anos de vida política. Eu nunca tive um processo contra mim. Não posso agora permitir que um bando de meninos, messiânicos, com interesse político eleitorais, com interesses ideológicos, venham jogar lama em cima do meu nome.

Sobre o STF, a gente sabe que a mídia burguesa faz essa  discussão em torno do caso do senhor. Discutir prisão em segunda instância impactaria 5 mil presos hoje, além de mudar a lógica do Judiciário. O senhor acredita que os ministros do STF fazem essa discussão pensando no que isso impacta no seu caso ou realmente pensando no impacto disso para a população brasileira e a forma como o Judiciário opera?

A única coisa que eu espero é que eles votem de acordo com a consciência deles e de acordo com o cumprimento da Constituição. O único compromisso que eles deveriam ter é com a verdade, com a Constituição. Obviamente que eu acompanho a imprensa todo dia, eu sei a pressão que a Globo faz. Eu sei que chegaram a dizer que vão soltar centena de milhares de presos, que «vamos num restaurante jantar com bandido», tentando criar uma certa inibição da hora do voto. Eu acho que a Suprema Corte não pode se deixar levar por essa pressão e nem pela ideia do que a opinião pública quer ou não quer. Se quiserem trabalhar de acordo com a opinião pública, as pessoas têm que ser candidatas a alguma coisa. Então vamos fazer eleição direta para o gabinete da Suprema Corte. Vamos fazer eleição direta para juízes. Não é assim. Eles têm uma tarefa sublime. Eles têm o cargo vitalício, um cargo de muita responsabilidade. Depois de um voto da Suprema Corte, a gente não tem para quem recorrer, então eles precisam, efetivamente, apenas com muita serenidade, cumprir o que a Constituição diz.

Se eles cumprirem o que a Constituição diz, o Brasil estará agradecido. Eu sempre espero, com muita, muita tranquilidade. Eu sei que as pessoas do outro lado não querem que eu seja livre. Eu tenho dito para algumas pessoas que um dos meus desejos é fazer um ato público na porta da Globo. Só por prazer. Para colocar todas as mentiras que ela contou sobre o meu caso nesses últimos anos. Passar um dia inteiro lá falando, fazer uma cronologia mostrando as mentiras contadas ao meu respeito. Agora, eu não vou sair daqui com raiva, com ódio, porque senão eu não vivo. Eu quero sair daqui bem de cabeça. Eu quero restaurar a verdade nesse país.

O senhor sempre tem dito que é importante que o povo creia na Justiça, que é importante para nossa democracia. Como é possível acreditar em uma Justiça, esperar que ela o liberte, se foi essa mesma Justiça que colocou você na prisão, caracterizada como uma prisão política, personificada no Moro e no Dallagnol. Como é possível esperar que ela liberte você?

Não foi a Justiça que me colocou aqui. A Justiça é uma coisa muito ampla. Quem me colocou aqui foi o Moro e os três juízes do TRF4, inclusive sem ler o meu processo. Se ele lesse o processo, eles iam ver que o Moro mentiu. Eles iam ver que o Dallagnol mentiu. O Dallagnol, aliás, deveria ter sido exonerado no dia em que ele leu o power point. Quando o cidadão passa uma hora e meia mentindo e depois da mentira ele fala: «Não me peçam provas. Eu só tenho convicção». Naquele ato, o Conselho Nacional do Ministério Público deveria ter exonerado esse rapaz pelo bem do serviço público. Ele foi mordido pela mosca azul e gostou. Ele tentou achacar a Petrobras, pegando R$ 2,5 bilhões para criar um fundo. Tentou fazer não sei mais o que com a [empreiteira] Odebretch, pegando mais R$ 3 bilhões, ou seja, virou uma quadrilha. Eu acredito que a Justiça é muito heterogênea. Eu acredito que as pessoas vão ler a Constituição e cumprir a Constituição. Se não fizerem isso, vou continuar brigando aqui dentro. É o seguinte: eu não abro mão da verdade. Eu não abro mão.

Eu sei o que eu passei na minha vida para chegar onde eu cheguei, sempre respeitando todo mundo. Eu vou continuar a minha briga. É uma briga difícil, mas eu vou fazer. A única coisa que eu tenho clareza é que eu não vou desanimar. Não peçam para eu desanimar, que eu não vou desanimar. Continuo dizendo que eu acredito na Justiça, porque veja: imagina eu, ex-presidente da República, de repente dizer: «Eu não acredito na Justiça». Se eu disser que não acredito na Justiça, eu vou ter que dizer outra coisa. Vou ter que falar pro povo: «Olha, vamos resolver com as mãos». Não é assim. Eu acredito que o Poder Judiciário tem um papel muito importante nesse país, é só seguir corretamente as leis e cumprir as leis. É só fazer julgamento com base na verdade, com base na prova, com base na apuração, e não com base em critérios políticos e preconceituosos de classe. Eu sei que a gente não tem ainda nenhum prounista [estudantes beneficiários do Programa Universidade para Todos] como ministro do Supremo [Tribunal Federal], mas um dia nós vamos ter. Eu acredito nisso e vou brigar.

Vários juristas apontam as inúmeras fragilidades do processo que o coloca aqui. Inúmeros juristas do mundo colocam essas fragilidades, ainda assim, o senhor está aqui. Essa é a questão que a gente coloca: o que permite…

O que é mais grave é que eu estou aqui por conta de uma mentira. Eu não sei se você está lembrada, eu sempre disse que a desgraça da primeira mentira e que você passa a vida inteira mentindo para justificar a primeira mentira. A mentira contada ao meu respeito foi muito grande. Ela foi contada pelas revistas, pelos jornais, pelas televisões, dezenas e dezenas de vezes. Ela foi contada pelo Moro, pelo Dallagnol, ela foi espalhada na vortex política desse país. Num tempo em que as pessoas tinham medo, num tempo em que as pessoas achavam que o mundo ia acabar. Como é que essa gente vai ter coragem de se desfazer dessa matéria? A Globo levou 50 anos para reconhecer que ela apoiou o golpe militar. Quantos anos ela vai levar para dizer: “Não, nós, na verdade, transmitimos coisas que não eram verdade”. Então, o que eu posso fazer?

Eu sou vítima de uma grande mentira, uma mentira que teve conteúdo político e ideológico muito forte. Uma mentira que foi confirmada várias vezes para poder evitar que o Lula fosse eleito presidente aqui dentro da PF. Então, na verdade, o objetivo era tirar o Lula do pleito. Era tirar o Lula do governo, era acabar com o PT. E você imagina o que aconteceu nesse país…

Você acha que nós temos que ficar quietos, vendo esse país ser destruído, vendido, rifado? Esse país está num leilão eterno. O «São Guedes» está vendendo tudo. Parece que está na 25 de março vendendo tudo em tempo de liquidação. Ou o povo reage, ou então, quando a gente acordar, a gente não tem mais Brasil, a gente tem um quintal dos Estados Unidos.

O senhor coloca a questão que queriam te tirar das eleições desde o golpe contra a ex-presidenta Dilma. Esse plano foi garantido pelas pessoas que te colocaram aqui dentro. Ainda assim há muito esforço para mantê-lo na prisão. Na sua opinião, o que eles têm? É medo de vê-lo solto?

Não sei o que eles têm. Eu acho que o que eles têm, na verdade, [é que] a mentira vai desaparecendo… E se eu estiver na rua em condições de falar com o povo mais livremente… A Globo não poderia pedir uma entrevista comigo aqui dentro para transmitir ao vivo? Com a Globo eu não confio de gravar, tem que ser ao vivo. A Bandeirantes não poderia pedir uma entrevista aqui ao vivo? Eu estou disposto a falar com eles. A Record… Marca um programa ao vivo e vem aqui. Manda a pessoa mais feroz deles, o mais antilulista que eles tiverem para me entrevistar aqui ao vivo. Tenho o maior prazer. E, com essa cara de “paz e amor de Lulinha” eu falarei com eles. Não tem problema.

Eu tenho desafiado eles. Porque eu acho que a única coisa que justifica o medo que eles têm de mim é saber que os pobres voltarão a comer três vezes por dia. É voltar a saber que a gente vai comprar os alimentos dos pequenos produtores rurais. É saber que a gente vai garantir que os pequenos produtores vendam parte dos seus alimentos para as escolas públicas desse país. É saber que as pessoas pobres vão continuar entrando nas universidades, nas escolas técnicas. É esse o medo que eles têm? Pois então me deixem morrer aqui, porque é isso que eu vou fazer.

Esse país teve um momento na sua história que o povo aprendeu a comer três vezes por dia. Teve um momento em que o povo aprendeu a comer uma picanha no domingo. Não era mais fazer churrasco com carne de segunda, era de picanha, costela. Então eles têm medo que o povo seja feliz?

Esse país sempre foi governado para 35% da população brasileira. Era 35% que ia para o aeroporto, era 35% que ia para as belas praias, era 35% que ia… E o povo marginalizado. Nós provamos que era possível esse país ser governado para todos, e é o fizemos. O que é engraçado é que fizemos isso com democracia, com direito de greve, com sindicato funcionando, com partido de oposição no Congresso Nacional tentando atrapalhar, com a imprensa contra nós o tempo todo. E nós fizemos.

Foi a primeira vez na história do Brasil em que os 20% mais pobres tiveram ganho real acima dos ricos. É pouco? É pouco, mas nós provamos que é possível fazer. É possível combinar exportação com mercado interno. É possível provar aumento do salário mínimo sem causar inflação. É isso. Na hora que você inclui as pessoas pobres dentro do orçamento da União e você assume o compromisso de que você tem que governar para todos, fica mais fácil governar.

Eu tinha consciência de que o Brasil não era meu. O Brasil é do Brasil, é do povo brasileiro. Por isso que nós fizemos 74 conferências nacionais para definir as políticas públicas que nós implantamos. Eles têm medo disso? Pois podem ficar com medo. Porque os pobres vão voltar a ir para o cinema, vão voltar a ir para o teatro, para os aeroportos, a ir para os restaurantes, parques chiques, shoppings chiques. Tinha gente que não gostava de ver pobre no shopping granfino. Eles acham que lugar de pobre é só no sacolão. Então o que a gente queria provar é que todos têm direito. Todos são cidadãos e todos podem ter acesso aos bens que produzem.

O que o senhor coloca é realmente inegável e a gente sabe pelos dados. O que o senhor acha que faz uma pessoa que teve acesso a inúmeras políticas públicas – para além da campanha midiática que a gente sabe que foi de muita força – vote em um governo como do Bolsonaro, por exemplo. O que faltou? O que pode ter acontecido nesse meio do caminho?

Olha, eu tenho dito que se a gente é atacado e a gente não reage, muitas vezes, aquelas pessoas que nos atacaram pensam que têm a verdade absoluta. Então, o PT foi atacado durante uma década e o PT pouco reagiu. As pessoas estavam, sei lá se com medo ou assustadas, porque era um ataque virulento de todos os meios de comunicação contra o PT. Virou uma coisa de pensamento único contra nós.

Ou seja, na hora que você começa a reagir, o outro lado começa a perceber que tem disputa. Você sabe o que é um cidadão de manhã, acordar, almoçar e dormir à noite ouvindo dizer que o PT é ladrão, que o PT roubou, que o PT não sei das quantas. Você sabe a quantidade de fake news, de matéria da Globo, da Veja, Istoé, da Época, do SBT. Era um massacre, que tinham pessoas que não tinham coragem de sair na rua.

Por isso é que eu resolvi me insurgir e resolvi enfrentar de cara. Para provar que ladrão são eles. Toda vez que esse país foi para as urnas para combater a corrupção, o resultado é isso: foi Jânio Quadros, foi Collor, e agora Bolsonaro. E numa demonstração…

Qual é a briga do partido deles agora? A briga do partido deles é pelo fundo partidário. É saber quem vai mandar em R$ 400 milhões. Então, quando você assume essa responsabilidade… Eu tenho dito para os companheiros do PT: por que nós perdemos as eleições? Nós perdemos as eleições por «n» razões. Tinha gente nossa desgostosa e teve uma campanha de fake news assustadora que nós não fomos para cima para provar isso até agora. Era uma coisa nova. Mas tem alguns dados que você tem que encontrar explicação.

Você não pode achar normal que um cara que não era conhecido nem pelo vizinho na casa do lado dele seja eleito governador, como o governador do Rio de Janeiro. Você não pode entender que algumas pessoas tiveram 12 milhões de votos com base no quê? Qual era o trabalho prestado para a sociedade? Era artista? Não. O que era? Obviamente só pode ter sido uma campanha de robô jogando fake news na cabeça das pessoas 24 horas por dia.

Então, o PT tem que se insurgir contra isso. E se insurgir com muita força, não é se insurgir com ódio, não, é se insurgir com muita força e não levar desaforo pra casa. Não tem ninguém naquela Câmara melhor que os petistas, melhor que as pessoas de esquerda, não tem. Então, vamos brigar.

Ficar atacando Foro de São Paulo, ficar atacando sem-terra, a CUT, é de uma grosseria, uma grosseria intelectual. Uma grosseria política. Essa gente não tem noção do que é o Foro de São Paulo. Essa gente não tem noção do que foi a luta dos sem-terra. Essa gente é um bando de malucos, falando qualquer asneira. Vale qualquer asneira. Na fake news vale qualquer bobagem. Então, em vez de a gente ficar assustado, a gente tem que enfrentar isso. A gente tem que enfrentar, não tem jeito. E eu estou disposto a brigar.

Se eles têm medo por conta disso, é o seguinte: eu sou de um estado que antes da independência brasileira já estava brigando pela independência, fazendo a sua revolução própria, de 1817. Depois fez a grande luta pela Confederação do Equador, de 1824. Tem gente que gosta de brigar, a luta do povo brasileiro não é contada, mas é uma luta extraordinária de resistência nesse país. Nem sempre os heróis aparecem na fotografia, porque os heróis eram decapitados, esquartejados, eram salgados.

E eu estou disposto a fazer tudo que eu puder fazer nesses últimos tempos de vida que eu tenho [para lutar] em defesa da honra do povo brasileiro, em defesa do direito de cidadania que o povo brasileiro tem que ter. É assim que vai ser a vida. Então, se eles têm medo de mim por conta disso, paciência, não vou mudar de comportamento. Tem gente que fala assim: “Como o Lula vai sair da cadeia? Ele vai sair nervoso? Calmo?” Eu vou sair do jeito que eu sou, nem pior nem melhor. Eu vou sair mais maduro, mais calejado, pensei muito na minha vida. Estou pensando. Quando sair daqui, eu quero casar outra vez. É assim que vou sair daqui. Vou sair daqui um pouco de “Lulinha paz e amor”, um pouco de “Lulinha João Ferrador” [personagem símbolo das greves do ABC, da cartunista Laerte], um pouco de gente que quer Justiça. Então se preparem que um dia eu saio. E um dia a gente vai se encontrar para continuar lutando nesse país.

O senhor traz muito o protagonismo da Globo no golpe e na sua prisão. Falou agora sobre a questão das fake news. Ao mesmo tempo, a gente vê como a Record tem ganhado cada vez mais uma atuação política alinhada ao governo Bolsonaro. Agora tem mais um grande complexo de comunicação com força… 

O que o SBT está fazendo é uma vergonha.

Exato, mas eles têm muito dinheiro. Além de tudo, como é possível a esquerda romper com toda essa lógica da mídia burguesa, das fake news? Já levando em consideração a autocrítica de que não foi feita a regulamentação dos meios de comunicação.

Eu faço a autocrítica porque é necessário fazer autocrítica, mas, na verdade, para você fazer uma regulamentação dos meios de comunicação, você tem que levar em conta a correlação de forças existente dentro do Congresso Nacional. E se você levar em conta a correlação de forças, você vai perceber que o quadro congressual é muito negativo para a sociedade brasileira. Acaba de ser aprovada uma política de reforma da Previdência que é contra o povo, e foi o povo que votou nesses deputados.

Quando você analisa que os companheiros do Movimento Sem Terra, com a força que tem nesse país, com o trabalho extraordinário, só tem dois deputados federais, e que a bancada ruralista tem mais de 200. Quando você analisa que metalúrgico deputado só tem dois e representante do empresariado tem 300, ou 400. Você fala: bom, como você vai aprovar coisas em benefício da sociedade brasileira se os que estão lá são contra ela?

Não sei se você sabe, em 1978, quando eu pensei em criar o PT é porque eu fui ao Congresso Nacional e descobri que não tinha trabalhador lá. E fiquei pensando: «Eu sou um babaca, eu fico achando que vai ter lei aprovada para me favorecer, e eu não tenho trabalhador aqui». Ou nós nos convencemos disso e passamos a trabalhar a sociedade para ela compreender isso, ou o cidadão é fazendeiro, mas não coloca no boletim de campanha «sou fazendeiro», ele coloca que é médico, advogado, contador… Ele é sempre o profissional liberal, ele nunca coloca lá «latifundiário», porque ele tem medo de que o povo não vote nele.

A gente precisa saber que para fazer as coisas que a gente sonha é preciso que a gente tenha não apenas um governo comprometido, mas a gente tenha uma correlação de forças favorável dentro do Congresso Nacional. Quando eu fui votado em 2002, de 513 deputados, eu tinha 91. Eu precisava de 257 para uma votação simples. No Senado, eu tinha, acho que 14, de 81 na época. Então você não consegue fazer as coisas que você quer, que você deseja, se você não tiver uma força no Congresso Nacional.

Então, é importante que o movimento comece a pensar que nós precisamos fazer lutas menos economicistas e mais políticas. Ou nós politizamos a sociedade para ela saber em quem vota na época da eleição, ou as pessoas estarão sempre colocando uma raposa para tomar conta do galinheiro, achando que vai dar resultado, e não dá resultado. O resultado é que a pobreza está voltando, o desemprego está voltando, a fome está voltando. O resultado é que a desmoralização do Brasil no exterior é muito grande. O Brasil virou motivo de piada lá fora.

Eu lembro que eu fui na inauguração desse centro que a Marinha tem no Rio de Janeiro, de acompanhar os navios que estão rodando pelo oceano no mundo inteiro. Na época que me foi apresentado isso, me parecia uma coisa fácil, mas nós já estamos com uma poluição nos mares brasileiros há 60 dias e até agora a gente não sabe quem fez aquilo. Fica o presidente blasfemando asneira e o seu ministro dizendo: «O óleo é Venezuela! O óleo é Venezuela! O óleo é Venezuela”, sem nenhum critério, sem nenhuma prova. Nós não queremos saber de onde é o óleo, se o óleo é da Venezuela, brasileiro ou iraquiano, iraniano ou é russo, americano…

Nós queremos saber que o óleo está atingindo as praias brasileiras, que é uma das fontes de riqueza e geração de emprego no Brasil através do turismo e que, até agora, há 60 dias, o presidente não pôs os pés lá, não foi lá. Até agora a gente não descobriu, não fez uma conferência com os governos dos navios que a Marinha tem o nome pra saber se foi, não é possível. Um navio não é uma coisa pequena. Se houve um vazamento, o país sabe que o seu navio vazou. Então estamos aí vendo a irresponsabilidade depois de 50 dias: vamos colocar o Exército, vamos colocar a marinha. Já era para estar todo mundo lá.

Então, essas coisas que não podem continuar acontecendo no Brasil. Eu estou vendo de um lado o Bolsonaro falando as bobagens dele, de outro lado o Guedes vendendo o Brasil. E nós estamos com uma luta economicista sem fim. Quando eu acho que a luta agora é eminentemente política. Eles não têm o direito de vender o Brasil. Eles não têm o direito de vender a Petrobras, vender a Eletrobras, as coisas que eles estão vendendo a preço de banana.

Esse petróleo que nós descobrimos através do pré-sal era para ser o futuro desse país. Eles estão entregando a preço de banana. A nossa luta tem que ser essa. A nossa luta tem que ser contra o desmonte do Brasil. Depois que o seu Guedes acabar de vender tudo, ele vai morar em Nova York, Paris; e o povo brasileiro que fique aqui, comendo o pão que o diabo amassou, porque é sempre assim na história do Brasil.

É por isso que tenho falado muito da soberania nacional. A soberania nacional não é defender a Petrobras, não é defender o Banco do Brasil. A soberania nacional é defender o povo brasileiro. Só existe uma nação, por causa do povo. E o que dá qualidade a uma nação é a qualidade de vida do povo, a qualidade de educação do povo, a qualidade da alimentação, a qualidade de produção, é o conhecimento científico e tecnológico dessa nação. É isso que é soberania. É isso que eu acho que a gente tem que ir para a rua, brigar. Engraçado, porque eu vejo as pessoas falarem: «Vamos para a rua», mas ninguém vai. O cara que fala não vai.

Por que o senhor acha isso?

Eu vejo tanta gente falar: «Tem que ir para a rua, tem que ir para a rua». Mas o cara que fala tem que ir. Se não for… O povo não dá murro em ponta de faca. O povo foi massacrado durante vários anos com uma quantidade de mentiras enormes, e eu sei da dificuldade de você reverter isso. Não é uma coisa simples. É preciso muito discurso, é preciso muita clareza, uma narrativa séria por parte do nosso pessoal. Temos que construir uma narrativa para lutar contra a narrativa deles. Então tudo para eles é o comunismo, tudo pra eles é o governo da Dilma, tudo pra eles é o Lula. E a nossa narrativa?

Eu acho que às vezes a gente tem muitos discursos diferenciados, cada um defende uma coisa, e a gente não conta uma narrativa única para o povo, para ele se dar conta do que está acontecendo no Brasil. Dizer que o Brasil está em crise por conta da Dilma é uma mentira deslavada. Eu, quando vejo o Temer dar entrevistar agora, como se não tivesse acontecido nada nesse país… Até reconhecendo que houve golpe, já…

Então o que eu acredito é que o pessoal, os nossos companheiros da esquerda, dos movimentos sociais, precisam construir uma narrativa. Nós temos uma coisa que a gente não tinha há dez anos atrás, que são as redes sociais, que têm coisas muito negativas, mas dá para a gente um instrumento que a gente não tinha. Então o que nós temos que fazer: é preciso construir a nossa rede social, juntar todo mundo que pensa mais ou menos a mesma coisa, e construir uma unificação de narrativa de alguns assuntos. Para que todo mundo saiba a mesma coisa ao mesmo tempo. Mas se cada um ficar falando uma coisa, nós estamos construindo uma Torre de Babel, e não conseguimos unificar a nossa luta.

Eu penso que está na hora de a gente fazer valer o instrumento que nós temos, que é a rede social. Está na hora de a gente fazer valer. Cada deputado tem um site, cada dirigente sindical tem um site, cada central tem um site, cada estudante tem um site… Agora é preciso que tenha uma linha. Outro dia estava vendo uma cena no Congresso Nacional, ou seja, fica todo mundo tirando foto de si mesmo, gravando. Eu estava vendo a Gleisi abrir uma reunião do Diretório Nacional do PT e ela falando, e tinha umas 20 pessoas ali…

Os seres humanos estão virando algoritmos. Não é o ser humano que está utilizando a internet, a internet que está utilizando eles. Quando é que a gente vai transformar esse potencial que nós temos num instrumento político para a gente brigar? Em vez de permitir que eles utilizem a gente para fins eleitorais, como utilizaram nas eleições agora no Brasil, nas eleições do Trump nos Estados Unidos, e outras eleições por aí. Então temos um momento extraordinário e um potencial, a gente apenas precisa saber como unificar procedimentos nossos para que a gente dê dimensão no potencial que nós temos.

Vou voltar um pouco na questão das correlações e composições, inclusive o [José] Genoíno já havia nos contado de que o que motivou a criação do PT foi realmente encontrar um Congresso que não tem trabalhador. Hoje, do ponto de vista de governo eleito, a gente tem composição de militares, presidente, vice-presidente, setores estratégicos, ministros à frente que são militares. E têm muitas discussões sobre quanto arriscado isso é para a democracia. O senhor foi preso político também na ditadura. Como o senhor enxerga essa composição hoje? Há realmente um risco? É uma composição natural a partir do que o Bolsonaro compôs?

A montagem do governo é o resultado daquilo que o Bolsonaro tinha condições de fazer. O Bolsonaro não era um cara alinhado com a sociedade civil. A relação dele está hoje, mais do que provado, com os reservas das Forças Armadas, com os milicianos do Rio de Janeiro. Você não tem noção do Bolsonaro participando de outra atividade que não fosse essa, e é essa gente que está ocupando o governo dele. Eu não tenho nada contra os militares estarem no governo dele. Você pode ter gente altamente competente exercendo funções de governo, não vejo nenhum problema. Mas o que se percebe é que ele coloca, porque ele não tem gente para colocar.

Uma vez eu viajei com o Collor, a Dilma, nós fomos pra Alagoas fazer um ato, e eu fiz uma pergunta para o Collor sobre algumas pessoas que ele tinha escolhido. Ele falou assim para mim: «Eu não tinha ninguém. Ninguém queria ir para o meu governo». O Bolsonaro, ninguém queria ir para o governo dele. As pessoas democráticas, tidas como civilizadas, ninguém queria ir para o governo dele. Então ele pegou o que tem. O que ele tem é isso. E ele acha bonito essas trapalhadas todas, ele acha bonito essas brigas do filho dele. Ele acha bonito tudo isso. É como se o Brasil tivesse virado um circo. Ele diz textualmente que não entende nada de economia, que não está preocupado com economia, que isso é o Guedes que faz, que não entende de meio ambiente, que é não sei quem que faz. Tudo ele não entende. Ele só entende de falar as bobagens que ele fala todo santo dia.

O que ele não percebe é que, com o comportamento, ele está diminuindo esse país diante do mundo. Porque quando você governa um país, uma pessoa tem que construir credibilidade. Quando você tem credibilidade, você pode fazer determinadas coisas com a sociedade acreditando. Mas ele é como se fosse um chefe de uma torcida organizada, tudo que ele fala é para os fanáticos deles. Quando você torce para um time, não tem nada mais chato do que você discutir futebol com fanáticos, com doentes, um cara que fala asneira toda santa hora. Então, eu tenho muitos amigos assim. Talvez eles achem que eu sou assim também (risos).

O dado concreto é que ele não fala para o Brasil, ele fala para o povo dele. Ele tem que contentar o povo dele, as pessoas que o cercam, as pessoas que batem, as pessoas que são violentas, as pessoas que ameaçam. Eu acho que tem uma parcela da sociedade brasileira que é assim. Tem um livro do Mia Couto, um escritor moçambicano, que tem uma frase que diz lá: quando a sociedade está com medo, ela se encosta no primeiro monstro que aparece.

Ou seja, as denúncias contra o PT, contra a esquerda, foram de tal magnitude que de repente uma parte do povo achou que era possível que esse cara resolvesse o problema. E, na verdade, não é. Ele não tem condição de resolver o problema. Ele vai passar a vida inteira contando mentira. Um cara que coloca um filho para disputar uma eleição com a mãe, sabe… Não é um cara tão normal assim. Mas é isso que o povo elegeu, então se o povo elegeu ele, ele que trate de governar. Ele tem quatro anos de mandato, ainda está no primeiro ano, significa que ele tem chance de fazer muita coisa pelo Brasil. Então que faça. Faça. Se o povo estiver comendo, se o povo estiver trabalhando…

Qual é a condição de trabalho hoje? O povo brasileiro foi reduzido a ser motorista de Uber, a ser entregador de pizza… É esse o trabalho? Não que esteja desmerecendo essas funções, mas é que essas funções não têm registro em carteira profissional, nessas funções as pessoas não tem direito a aposentadoria. As pessoas ficam acidentadas e não recebem sequer um amparo do Estado. Nós estamos voltando, da forma mais perversa possível, ao mesmo tratamento que se dava no tempo da escravidão. Com uma vantagem, no tempo da escravidão, o dono do escravo era obrigado a cuidar do seu escravo. Agora não, agora a sociedade está submetida ao trabalho intermitente. Eu faço o que tem, na hora que querem que eu faça, me pagam o que querem, onde nós estamos vivendo, destruindo tudo que é conquista que nós tivemos?

Não foi fácil conquistar essas migalhas que nós temos. Eles estão destruindo em nome do quê? Em nome do aumento do lucro dos donos do dinheiro. É isso que está acontecendo no Brasil e no mundo.

Então, ou nós nos insurgimos contra isso com muita clareza, montamos uma estratégia de como vamos enfrentar essas coisas, ou vamos ter esse país como se fosse um país de terra arrasada. É o que eles estão fazendo. Eu, sinceramente, fico muito indignado com o que está acontecendo no Brasil. Só não vou dar cabeçada na parede, porque não tenho com quem reclamar. Ou dou cabeçada na parede ou fico quieto. Então eu, sinceramente, não me conformo com o que está acontecendo. Eu fico dizendo… Eu vejo todo dia: «Tem medo do Lula, não quero que Lula saia, Bolsonaro já articula para sair [?]»…

Olha, tem que saber de uma coisa: se eu sair, eu vou para a rua conversar com o povo brasileiro. Não tem jeito. Vou conversar e vou chamar o povo a lutar contra essa entrega que eles estão fazendo. Se o prejuízo que eu causar à minha vida for lutar pelo povo brasileiro, é a única coisa que eu aprendi a fazer. E hoje eu estou, diria, mais preparado, mais motivado, porque sei que a gente pode ser infinitamente melhor do que eles para cuidar desse país e para cuidar do povo.

Quando falam da corrupção, a corrupção sempre foi utilizada para a direita chegar ao poder. Quando eles falam: «Ah, devolvemos não sei quanto para a Petrobras». Eles tem que dizer qual o prejuízo que eles deram para o Brasil. Mais de R$ 142 bilhões ao Estado brasileiro. Só na construção civil mais de 1,2 milhão de empregos, fora a destruição da indústria naval, a destruição das nossas faculdades… A troco do quê? E o que estamos fazendo? O nosso problema é que…

Eu assisto muita coisa. Tem muita gente nas redes falando, tem uns 50 jornais que eu assisto aí… O problema é que cada um fala por si. É preciso tentar dar densidade coletiva às coisas que nós falamos para juntar gente. E determinar uma linha de ação. Precisa saber o que nós queremos. Nós queremos a universidade pública forte? Nós queremos investimentos em ciência e pesquisa? Nós precisamos brigar por isso.

Existem algumas discussões dentro da esquerda acerca da terminologia usada para definir o que é o governo Bolsonaro. Tem «neofascismo», «totalitarismo», «autoritarismo», e isso ajuda a definir a linha… [Lula interrompe]

Eu sinceramente não acho. Eu não sei qual é a discussão que… Eu não acho que a gente tem que ficar procurando definir o que é o governo Bolsonaro. O governo Bolsonaro é o Bolsonaro. Está aí. Eu não quero fazer análise do governo Bolsonaro. Eu quero saber o seguinte: ele está destruindo esse país. Ou nós brigamos ou nós não brigamos. Sabe? Então ele colocou o Guedes com a única missão de vender o país. Nós estamos vivendo uma contradição. De um lado o Chile em pé de guerra, inclusive por causa dos aposentados que estão morrendo de fome. E nós aqui festejando a aprovação de uma política de reforma da Previdência que vai acontecer, no longo prazo, o que está acontecendo com o Chile.

Então eu não posso fazer crítica a quem está fazendo as análises para definir o Bolsonaro. Eu, sinceramente, não quero nenhuma definição do Bolsonaro. Ele é o que é. E eu acho que nós temos que brigar pelo Brasil. Vamos definir o que nós queremos do Brasil e brigar por isso.

A gente assiste a esse retrocesso promovido pelo governo Bolsonaro em diversas áreas. Na saúde, cada dia é uma. O senhor acha que é possível reverter esse quadro de retrocesso? Custou tanto para garantir os direitos do povo. Esse trator é possível de ser freado? E como é possível fazer essa reconstrução? O senhor vê isso no horizonte?

Vamos ter em conta o seguinte: uma Previdência Social, de quando em quando você tem que fazer um ajuste em função dos avanços da própria sociedade. Você não precisa ficar um século com o mesmo sistema de aposentadoria, você pode fazer ajustes. Eu lembro que quando eu comecei a trabalhar, a gente, muitas vezes, não se aposentava porque morria antes de se aposentar. Eu lembro que naquele tempo quem tinha 60 anos era velho. Hoje as pessoas estão vivendo até os 75. Dependendo da profissão, até um pouco mais. Você pode fazer ajustes, o que você não pode fazer ajuste é por conta do déficit público. [Não se pode] tentar colocar a culpa na aposentadoria e nos aposentados pela questão econômica.

O que o povo pagava dava muito bem para cobrir a Previdência Social. Nós temos um problema no setor público, que eu fiz um ajuste em 2003. O PSOL foi criado por causa da briga da reforma da Previdência que eu fiz. Era preciso ajustar alguma coisa. Filha de general não casava para ficar recebendo pensão a vida inteira; o cara se aposenta recebendo salário integral e ainda tem aumento real da categoria. Tudo isso a gente brigou muito. Era o Ricardo Berzoini o ministro da Previdência Social. Agora, a receita da iniciativa privada era superavitária até 2014. [Se] você quer resolver o problema da Previdência Social, [tem que] gerar emprego. Quando você gera emprego, você gera um contribuinte. Quando você gera um contribuinte, gera um aumento da arrecadação. Foi assim no nosso governo, quando nós criamos mais de 20 milhões de empregos com carteira profissional assinada.

Aí [se] você quer fazer um ajuste na Previdência, discute com a sociedade. Eu criei um grupo em que participavam todas as centrais sindicais, participava o governo e participavam os empresários. Vamos discutir, vamos ver o que precisa aperfeiçoar, e você faz. O que você não pode é tentar fazer uma reforma para resolver um déficit que não é da Previdência, para resolver o problema fiscal do governo. Eu sinceramente não sei… Não é fácil você aprovar emenda constitucional nesse país. O Congresso, hoje, é muito mais conservador do que já foi em qualquer outro momento. Eu acho que  nós vamos ter que ver o que a gente quer desse país. Eu, sinceramente, acho que é quase que a reconstrução, porque estão desmontando tudo. Tudo que foi criado. Não tem mais um conselho, não tem mais nada que nós criamos funcionando. É uma destruição, é como se fosse um furacão. Sabe isso que você vê na televisão, que destrói uma parte da Califórnia, de Miami, de Cuba, da Jamaica? Está passando um furacão, destruindo tudo o que foi construído, em nome de combater o comunismo. Eles nem sabem que o Muro de Berlim caiu em 1989. Eles nem sabem. Eles estão falando de coisas sem saber do que estão falando.

Veja, o Brasil é o único país que tem como ministro da Ciência e Tecnologia um astronauta. Portanto, ele subiu no foguete, saiu da atmosfera e sabe que o planeta é redondo. E o presidente dele acredita que a Terra é plana. Ele [ministro Marcos Pontes] tem que contar para o presidente: «Olha, eu subi lá. Eu tirei fotografia, está aqui. O mundo é redondo. Bolsonaro, a terra é redonda. Fala para o seu guru que não tem terra plana». Mas, não, a gente vive isso.

Ontem eu vi o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Sales] dizer [que] o óleo é da Venezuela. Quem quer saber de onde é o óleo, meu Deus do céu? Nós queremos saber que o óleo está poluindo a praia brasileira. Se for dos Estados Unidos é bom? Se for de Israel é bom? Não. O problema do óleo é que é da Venezuela. [Isso] é de uma cretinice muito grande. E nós estamos vendo isso, sabe?

Nós precisamos recuperar o espírito rebelde do povo brasileiro. É isso que nós precisamos.

Todo esse desmonte coloca o povo brasileiro em uma situação muito delicada, de estar tentando prover sua própria vida. A gente não vive mais os tempos de acesso às políticas públicas que permitiam que se tivesse 10 minutos para refletir o que cada um queria sobre o Brasil. Como esperar que O povo, que está vendendo o almoço para comprar a janta, reflita sobre o que quer, vá para a rua, se insurja?

O problema é que se cria um pânico na sociedade, e a sociedade brasileira esteve, por um tempo, muito amedrontada. Eu lembro que, logo depois da eleição do Bolsonaro, eu ouvia muita gente dizer: «E agora? Eu vou embora não-sei-para-onde. Eu recebi ameaça de morte, etc». As pessoas começam a ficar com medo, e não se faz política com medo. Com medo, você não faz nada. O medo permite que uma mulher muitas vezes não resista a um estupro. Porque ela está com medo, ela está com pânico. O medo fazia com que muitas vezes um escravo tomasse chibatada sem ser amarrado e não reagia. O medo faz com que a sociedade deixe de fazer muitas coisas. Mas, medo do quê?

O cara ganhou as eleições. Nós não gostamos do jeito que ele ganhou as eleições, mas ele ganhou as eleições, tomou posse, montou o governo dele. Eles possivelmente pensaram o mesmo de nós quando nós ganhamos. «Porra, esse Lula, esse metalúrgico grosseiro, que fala ‘menas laranja’, que não sabe nem falar direito. Esse cara vai governar o Brasil. Esse cara que não é chique». Eles pensaram o mesmo de nós. Então, eu acho que a gente não tem que ter medo e nem desespero. Primeiro, nós temos que ter consciência que, para quem ganha, quatro anos são quatro dias. Para quem perde, quatro anos são quatro séculos. É muito difícil você esperar terminar um mandato, para quem está na oposição. E é muito rápido para quem está no governo.

[Ele] Nem bem começou a governar e já tem um ano. Daqui a pouco, temos eleições outra vez. O que nós temos que fazer? Nós temos que preparar o que nós queremos nesse momento. Vou te dar um exemplo. O PT apresentou um plano de emergência. Na verdade, o PT pegou o programa que o Fernando Haddad fez na campanha, transformou em vários projetos de lei para apresentar no Congresso Nacional, tentando transformar aquilo em um instrumento de luta do povo brasileiro. Hoje, eu acho estranho, porque ninguém mais fala do plano de emergência que foi apresentado. Aí, apresentou-se a proposta de política tributária. Daqui a pouco, apresenta outra coisa.

Ou seja, nós mesmos vamos nos atropelando sem definir o que é prioritário, o que é mais importante. O Vicentinho [deputado Vicente Paulo da Silva] brincava que a gente tinha que definir o seguinte: o importante é principal, o resto é secundário. Então, nós temos que saber o que é importante para nós e, em cima disso, fazer uma luta.

Defender as universidades e as escolas técnicas é importante, defender a qualidade de ensino é importante, defender a Petrobrás é importante. Vamos mapear essas coisas. Por isso que eu estava pensando em fazer um texto sobre soberania. Aí, foi criada a comissão, foi criada uma secretaria. Mas, tudo que você cria, tem que transformar em ação política. O que é transformar em ação política? É falar todo dia, fazer o povo compreender, e pedir para o povo falar todo dia. Quando todo mundo estiver falando a mesma coisa, a coisa começa a rodar, começa a funcionar. E nós não estamos fazendo isso.

Todo mundo quer brigar, mas todo mundo quer brigar por uma coisa [diferente]. Tem uma razão. É o seguinte, está claro: nós precisamos provar que o Brasil não precisa ser destruído; que o Brasil não pode ser subordinado aos Estados Unidos; que o Brasil é um país que pode ser protagonista e que, para tudo isso, o povo tem que trabalhar, comer, estudar, ter acesso à cultura. O que eles estão fazendo com a cultura é uma coisa muito grosseira. Os artistas brasileiros já deveriam ter parado esse país. Como é que pode você tentar jogar a responsabilidade na cultura para combater qualquer coisa ideológica? Depende de o presidente gostar ou não gostar: que história que é essa? Quanto mais liberdade houver na área cultura, melhor. Eu vejo muitas vezes as pessoas com um certo sentimento de passividade, de contestação, mas sem uma ação. Não dá. Sinceramente, não dá.

Está terminando este primeiro ano [de governo Bolsonaro], vamos ver o que a gente pode fazer para os anos seguintes. O que não pode é deixar destruir o país como estão destruindo. Não se falam mais muitas coisas que a gente falava. Acho que não se tem mais casa popular – não se constrói mais casa popular –; a palavra «emprego» não aparece mais; a palavra «desenvolvimento» não aparece mais; as palavras «redistribuição de renda» não aparecem mais. E a imprensa faz um sacrifício enorme. Quando o PIB cresce 0,000001%, eles vendem como se fosse uma coisa extremamente importante para o país. Assim, o tempo vai passando, e a gente está deixando de fazer a boa briga nesse país.

O senhor falou sobre como o tempo passa rápido para quem está no poder. O que a gente, a partir da lógica da democracia brasileira e dos nossos partidos, é que eles se movem quase que exclusivamente conforme a agenda de eleições. Muitas vezes, estão descolados com as lutas cotidianas do povo brasileiro. Soma-se a esse cenário a narrativa de negação da política, de criminalização da política pela mídia, principalmente. O senhor acha que o PT está dando respostas internas e externas a essas questões? Há uma tentativa de se reinventar, reinventar o partido diante desse cenário novo que se coloca?

O problema da questão eleitoral é porque você tem um calendário. E o calendário acontece independentemente de você querer. Tem eleição a cada dois anos nesse país. Você tem uma eleição para prefeitos agora em quase seis mil municípios, e os partidos têm que se preocupar com isso. Você começa a se preocupar com eleição um ano antes, não no dia da eleição. Então, isso não impede que o movimento social não faça suas lutas específicas, suas lutas políticas todo santo dia. A luta por habitação, a luta por salário, a luta por terra, a luta por educação é cotidiana. E o partido político, quando chega a época da eleição, se prepara.

Eu tenho defendido algumas coisas que… eu lamento que, às vezes, eu falo daqui de dentro e não estou lá fora para ouvir os “nãos” ou os “sins” de concordância.

Mas, veja, tem pessoas que falam o seguinte: «O PT não está fazendo o que as pessoas achavam que deveria fazer». Vou dizer uma coisa para vocês, com toda a sinceridade e com toda a humildade. O PT é o mais importante partido político de esquerda existente no mundo hoje. Não tem nenhum partido que tenha a base do PT. Não julgue o PT por uma reunião do diretório do PT. Se você quer conhecer o PT, vá para os cafundós do Judas desse país, no sertão, na Amazônia, para saber o que é o verdadeiro PT.

O PT é muito grande, mas as pessoas vivem tentando dizer: «O PT não vai ganhar, porque tem o antipetismo». Veja, tem o antipetismo como tem o “anti-flamenguismo”, o “anti-Vasco”, o “anti-Beija-Flor”, o “anti-Mangueira”, o “anti-corinthiano”. Tem o cara que não gosta de nada.

É importante lembrar que o Brasil não tem cultura partidária. Não tem partido nacional. O PT é o primeiro partido de cunho nacional, de envergadura, grande. O Brasil tem muitos partidos locais: a tribo de São Paulo, do Paraná, que não se conectam entre si. O PMDB não toma uma decisão que 27 estados cumpram. Paraná cumpre se quiser, Pernambuco cumpre se quiser, São Paulo cumpre se quiser. O PT não. Quando se toma uma decisão, baixa o centralismo. Tem que cumprir para poder funcionar como partido político.

E tem gente que fala: «Ah, mas o anti-petismo». Por isso, nós aprovamos eleição em dois turnos. No primeiro turno, cada partido coloca sua cara, como na busca de um título. Tem 20 times no Brasileirão. Só um vai chegar lá, mas todo mundo está disputando. Então, no primeiro turno, cada um lança um candidato. E, no segundo turno, você junta os iguais.

Então, eu defendo a tese de que o PT não pode perder o seu vínculo originário. O PT foi criado a partir da classe trabalhadora brasileira e de sua capacidade de luta. É importante lembrar que os sem-terra [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado em 1984] foram criados quatro anos depois do PT, quase que com o mesmo povo, quase que com a mesma parte da igreja, da Teologia da Libertação, quase que com o mesmo apoio.

É importante [lembrar] que a CUT foi fundada em 1983 com o mesmo perfil, o mesmo público, a mesma parte da igreja apoiando, a mesma parte do movimento popular, os mesmos deputados. Era quase tudo oriundo do mesmo útero. Nós insistimos e estamos aqui. Foi um dos maiores movimentos criados na América Latina. O que nós precisamos? Conversar e estabelecer estratégias comuns entre nós. Para a luta pela reforma agrária, para a luta por salário, para a luta eleitoral. Tem espaço para tudo. Agora, se a gente não conversa, cada um fica trancado no seu mundo, fica tudo mais difícil.

Se o PT achar que o mundo se resolve apenas pela concepção parlamentar, não se resolve. Ou pela concepção de quem está administrando uma cidade ou um estado, não se resolve. O PT não pode abdicar de ouvir a sua base.

Eu, quando era presidente do Sindicato [dos Metalúrgicos] em São Bernardo do Campo, quando tinha qualquer dúvida, falava: «Eu vou adquirir experiência na porta da fábrica, vou pegar oxigênio novo, vou respirar o que a ‘peãozada’ está respirando. É assim que o partido tem que sobreviver. Por isso que eu briguei para a Gleisi [Hoffmann} continuasse presidenta do PT, porque acho que ela está falando exatamente aquilo que o povo quer que fale. Aí, o povo critica: «O PT precisa conversar com todo mundo». Tem que conversar com todo mundo, sim, e eu converso com todo mundo. Sempre conversei com todo mundo.

Eu, por exemplo, tenho divergências com companheiros sem-terra, e eles têm divergências comigo, mas nós nunca deixamos de ser companheiros. Nas horas cruciais, a gente está do mesmo lado, remando para a mesma praia. É assim que deve ser. E tem que saber o seguinte: o PT não é um partido de vanguarda, é um partido de massas. E um partido de massa ouve a sua gente.

Tem que ouvir o povo na periferia, nos locais de trabalho, nos quilombos, tem que conversar com todo mundo, com católicos e evangélicos. E não ter medo de ser um partido de massas, não ter medo de defender o seu legado. Isso é muito importante.

Quando você quer dar o exemplo de uma política social bem sucedida no mundo, todo economista fala [sobre] o New Deal, nos EUA, no governo [Theodore] Roosevelt, nos anos 1930. E eu digo: «Por que fala do New Deal e não fala do nosso governo?». Você quer pegar exemplo de coisa bem sucedida na América Latina? Tem a Venezuela, que teve coisas bem sucedidas; tem o companheiro Evo Morales, que tem coisas muito bem sucedidas, é o presidente mais longevo da história da Bolívia e o que mais fez políticas de distribuição de renda – a Bolívia hoje é o país que mais cresce na América do Sul. E você tem o Brasil.

O que nós fizemos no Brasil não tem [nada] similar. É que, muitas vezes, a gente não consegue juntar todas as peças do que nós fizemos. Não foi [só] o Bolsa Família. É que nós criamos um conjunto de políticas públicas, que somadas…

Eu lembro que, quando eu disputava as eleições, tinha um movimento chamado Asa [Movimento Semiárido Brasileiro], que queria construir cisternas, um milhão de cisternas. E era difícil, porque não tinha dinheiro, não tinha estrutura. Quando a gente chega no governo, o que aconteceu? Nos nossos 13 anos de governo, nós entregamos 1,4 milhão de cisternas.

Eu lembro do programa Luz Para Todos. Era caro, ninguém queria assumir, e nós assumimos. Custou R$ 20 bilhões para levar energia para quase 15 milhões de pessoas. Eu lembro do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. O que foi o milagre do PAA para o pequeno produtor! Eu discuto com os companheiros o seguinte: no governo do PT, nos 13 anos do PT, nós disponibilizamos para a reforma agrária 51 milhões de hectares de terra. Isso é mais de 50% de tudo que foi feito em 500 anos. Não fizemos tudo. Obviamente que não fizemos tudo. Houve dificuldades. Houve tempos mais fáceis, mais difíceis, mas o dado concreto é que vivemos um momento de muito progresso nessa área. Agora eles estão destruindo.

Eu vi agora pelos jornais que, até a extraordinária feira que os sem-terra faziam em São Paulo [Feira Nacional da Reforma Agrária], não deixaram mais. Se fosse uma feira de cocô de cachorro irlandês, o governador [João Doria] deixaria. Para vender os produtos produzidos pelos sem-terra, ele não deixa. Então, nós precisamos recuperar o governo para isso também.

O que o senhor acha que o impediu de realizar a reforma agrária como o seu governo planejava? Que tipo de forças impedem que o Brasil faça sua reforma agrária, como tantos outros países que já resolveram essa questão, inclusive no século 19? É um lobby do agronegócio, é a correlação de forças no Congresso? O que impede que se faça isso?

Tem correlações de forças no Congresso que impedem você de fazer muitas coisas. No Brasil, você tem que pagar terra que você desapropria e, às vezes, é muito caro. Eu tive problemas sérios com desapropriações em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, [que ocorreram] quase no final do meu governo.

Era muito caro desapropriar para atender poucas pessoas. Isso eu discuti muito com os companheiros, porque as pessoas querem cada vez mais ficar assentados em lugares em que as terras vão ficando cada vez mais caras.

Agora, a verdade é que nós fizemos muita coisa, muita coisa. Certamente, deixamos de fazer muitas coisas, mas foram assentadas por volta de 570 mil famílias. Você pode ter discordância entre os números do governo e dos sem-terra, da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], da CUT, mas esses são os dados oficiais com os quais eu trabalhava.

E não apenas a questão da terra, [mas] a questão da possibilidade de trabalhar a terra, as condições das pessoas trabalharem a terra, o acesso à tecnologia, o acesso aos financiamentos, às compras. Porque uma coisa é você produzir e não vender, outra é você produzir e ter mercado para vender. E nós criamos muitas possibilidades.

Eu tenho consciência que nós não fizemos tudo que os companheiros queriam, mas nós já fizemos mais do que qualquer outro governo fez na história desse país. E mantenho a relação de lealdade e companheirismo com todo mundo, porque eu acho que é o [MST] é o movimento mais sério que temos no Brasil, e eu fico orgulhoso com a sua capacidade produtiva.

Ou seja, hoje, a gente fica sabendo da qualidade dos produtos, que os sem-terra são os maiores produtores de determinados produtos orgânicos no Brasil – e que o governo deveria se orgulhar disso, deveria comprar, criar condições, o mundo deveria comprar. Então, eu fico orgulhoso disso e acho que o aprendizado é o de que nós poderemos fazer mais e cada vez mais. Tanto para os sem-terra quanto para os sem-teto, os quilombolas, [a população] LGBT.

Eu vou sair daqui muito mais aberto do que eu já fui, com muito maior vontade de conversar, entendendo muita coisa que eu não entendia, com muito mais serenidade. É assim que eu quero sair daqui, para ver se eu contribuo com as pessoas.

O senhor analisa muito bem que o conceito de reforma agrária não é só terra: é um pacote de políticas públicas que permitem que a família e o trabalhador permaneçam na terra produzindo com condições, com estrutura. E a gente não tem nenhum assentamento recente. Agora, as sinalizações dadas pelo governo também aumentam em muito a violência no campo.

Para realizar a reforma agrária, a gente enfrenta estruturas muito consolidadas de poder, que é o latifúndio, é o grande agricultor. Existe a possibilidade de se realizar, a partir da experiência que já tivemos no governo Lula – que avançou, mas ainda ficou aquém em relação ao proposto pelo Plano Nacional de Reforma Agrária? Porque nas outras experiências da América Latina, a reforma agrária ocorreu à base de muito enfrentamento e rupturas com o agronegócio. É muito difícil enxergar isso hoje, mas já era difícil enxergar nos governos Lula…

Um dos problemas nossos é dar terra e dar condições de produzir. Porque, durante muito tempo, você invadia uma terra e não tinha financiamento, não tinha como vender o seu produto. As pessoas ficavam em uma terra, passando as mesmas necessidades.

Eu acho que os companheiros sem-terra têm noção de que nem eles conseguiram fazer tudo que imaginavam que poderiam fazer depois de conquistar a terra. Porque a vida é assim. Na vida, a gente vai conquistando e aprendendo com o passar do tempo. Não é nem um demérito eu dizer que não sabia uma coisa dez anos atrás e agora eu descubro que sei e quero fazer diferente. Então, acho que houve uma evolução na compreensão de todo mundo sobre o que fazer.

Eu sempre tive uma preocupação e conversei muito com meus companheiros sem-terra. O problema é o seguinte: tornar a terra produtiva para a gente ganhar credibilidade na sociedade, porque, por enquanto, [estão] vendo a gente como se fosse o demônio.

As pessoas tem memória curta, mas eu lembro. Eu lembro do [Ronaldo, governador do Goiás pelo DEM] Caiado montado em um cavalo branco, de madrugada, no Rio Grande do Sul, como se fosse um paladino juntando gente – inclusive ligada aos sem-terra, – ligados aos pequenos proprietários, na luta contra a reforma agrária. Quem não lembra disso, em 1989?

Então, foi [se] criando um clima de ódio contra os sem-terra, e eu tinha em mente que a gente ia diminuir isso na medida em que fossemos mostrando que é capaz de se produzir quando eles têm terra, assessoria técnica, quando eles têm mercado para os seus produtos. Eu visitei muitas cooperativas dos sem-terra, umas com problemas, outras que melhoraram. Acho que, na medida em que eles têm recursos para fazer as coisas, vão fazendo com melhor qualidade.

Eu não sou favorável a esse antagonismo de que só pode existir agricultura familiar se acabar com o latifundiário. Mas esse cidadão que tem uma propriedade de terra produtiva, o cidadão que pensa nesse país, sabe que quem produz alimento para o povo comer não é ele. O que ele produz é apenas para exportação. Ou produz cana, ou produz soja, algodão, tudo para exportação. Quem produz a galinha caipira que ele gosta de comer é o pequeno proprietário.

Nós temos no Brasil, só para você ter ideia, 4,2 milhões de propriedades de até 50 hectares. Isso representa apenas 13% das propriedades. Se você somar até 100 hectares, são 4,6 milhões, [o que] representa 20% da terra. Vai sair um dado novo amanhã, deve ser publicado um dado novo sobre as propriedades rurais – esse aqui é de 2017, o que estou trabalhando aqui.

Agora, imagine só: enquanto você tem quase 5 milhões de propriedades ocupando 20% da área agricultável, você tem do outro lado 105 mil propriedades que detêm 58% de toda a terra. Ou seja, você tem 2% de proprietários que produzem três vezes mais terra do que 5 milhões de pessoas. Desses, você tem gente que produz com seriedade, que leva em conta a questão ambiental, que paga salário, e você tem esses bandidos que estão fazendo queimadas na Amazônia, esses que querem matar índios, quilombolas, que querem matar sem-terra.

Há uma predominância de um discurso canalha neste momento no Brasil, e não é possível que a gente não resista a isso em nome da verdade, em nome do bom senso, em nome do país. O povo brasileiro é um povo, não diria pacífico, mas é um povo alegre. O povo brasileiro não gosta de violência. Se puder resolver as coisas numa boa, resolve. Não são os sem-terra que provocam violência, não é a CUT que provoca violência, não é o quilombola que provoca violência. Eles são vítimas de uma violência da forma mais descabida possível. E a gente vinha vivendo em um clima de paz.

Vejam, vou contar um dado para vocês. No meu período de governo, foi o momento que houve menos invasão de terras na cidade, em que houve menos invasão de terras no campo, foi o momento em que houve menos greve no funcionalismo público e na iniciativa privada. Foi o movimento em que houve mais assentamentos, mais aumento de salário. Por quê? Porque a gente conversava, a gente acertava as coisas, a gente discutia antes.

Eu tinha 10 ministros em uma mesa de negociação com o movimento sindical. Eu era acusado de assembleísmo. Mas eu não tomo decisão quando eu estou com 40 graus de febre: eu espero baixar para 36. Eu não tenho nenhum problema em dormir a noite sem tomar uma decisão para pensar e refletir no dia seguinte. Eu não gosto de tomar decisão sem conversar com algumas pessoas, porque a gente sempre constrói na vida algumas referências. Aí eu vou ligar não sei para quem, vou conversar com não-sei-quem e, sobretudo, conversar minha consciência. Então, nós provamos que é possível construir uma harmonia na sociedade brasileira.

Eu fiz 74 conferências nacionais para discutir todos os assuntos. Este cidadão que vos fala foi a um encontro LGBT com mais de duas mil pessoas – minha assessoria de segurança não queria que eu fosse, com medo de alguém me beijar. Ora, eu era presidente da República, eu lá ia ter preocupação se alguém ia me beijar? Eu queria mais era ser beijado mesmo! E essa gente existe, tem que ser tratada com respeito.

Às vezes, eu fico preocupado. Quando as pessoas ficam perguntando “ah, você é favorável ao aborto?”, a gente fica sem saber o que falar. Não pode dizer «não», porque vai desagradar os que querem «sim». Não pode dizer «sim», porque vai desagradar os que querem «não». O presidente da República não tem que ter posição pessoal, mas uma posição de Estado.

Eu, Lula, fui casado com a dona Marisa [Letícia] por 43 anos, e a gente era contra o aborto. Mas eu, Lula, cidadão brasileiro, tratei o aborto como uma questão de saúde pública. As pessoas iam ser tratadas, respeitadas e curadas. Porque, enquanto você fica criticando se um pobre pode fazer aborto, a madame vai para Paris [capital da França] fazer aborto. Você não permitir que uma mulher pobre fique cutucando o útero com uma agulha de tricô, que fique colocando fuligem de fogão de lenha na vagina: você dá a ela um tratamento adequado. É assim que o Estado tem que proceder, é isso que é um chefe de Estado.

O ser humano pode reagir emocionalmente, mas o Estado não reage emocionalmente. É isso que a gente tentou passar para a sociedade brasileira: esse é o papel do Estado, cuidar das pessoas, dar carinho das pessoas. Por isso, eu utilizava muito a ideia de “coração de mãe”. Se você quer aprender a ser democrático, você tem que casar e ter filho, porque não tem nada mais democrático do que estar sentado em uma mesa com cinco filhos brigando pelo bife, brigando pelo arroz, um puxando o prato do outro, e você ter que coordenar aquilo e sair da mesa sem ninguém esfaquear ninguém.

Você tem que fazer concessão toda hora. Você tem que fazer concessão para sua mulher toda hora. Ela faz por você também, e aí você faz para os filhos. Então, eu gosto tanto disso que eu vou casar outra vez, sabe? Para poder continuar sendo democrático, para poder fazer concessão.

O senhor vai me perdoar se eu estiver insistindo, presidente…

Eu acho que vocês estão estranhando, mas eu tenho razão de sobra de estar com muito ódio. Todo o meu trabalho aqui dentro é tentar fazer análise comigo mesmo, sozinho, para não deixar o ódio me consumir. Vou sair daqui mais preparado, espero conseguir conversar com vocês quando sair daqui. Vocês irão perceber que eu estou mais maduro, mais consciente. E não pense que estou velhinho, não. Eu estou com muito mais vontade de brigar do que quando eu tinha 50 anos. Eu estou muito mais maduro para brigar.

Então, quem achar que a idade vai me consumir, pode tirar o cavalo da chuva. Nem a idade, nem o ódio: eu sou um cara tranquilo, e eu acho que o amor sempre vence. Você tem que colocar o amor em primeiro lugar em tudo o que faz.

A gente sabe que criar expectativas pode ser uma grande armadilha. Mas o tema mais quente hoje, com certeza, lá fora, é o STF [decisão sobre prisão em segunda instância]. Como o senhor se sente? Acha que essa é a sua última entrevista [aqui dentro]?

Deixa eu te falar uma coisa: eu até proíbo meus advogados de conversarem comigo sobre isso. Eu não gosto de trabalhar com expectativas, sobretudo quando estou trancado. Porque, se você fica gerando expectativa, você fica frustrado, não sobrevive. Eu não deixo me consumir por expectativa.

Eu sei porque estou aqui, eu tenho noção. Os canalhas que me colocaram aqui dentro sabem que eu sou mais inocente do que eles. Eu tenho noção de que a família Marinho [dona do grupo Globo] sabe que todos eles juntos não são tão honestos quanto eu.

Se isso é uma provação pela qual eu tenho que passar, eu passarei com muita tranquilidade. Então, eu não me deixo consumir por expectativas. Não deixo, porque eu sei o que vem pela frente e não vou ter sossego. Eu vou ter que viajar por esse país, vou ter que me esgoelar, vou ter que visitar sem-terra, vou ter que visitar quilombolas, desempregados, catadores de caranguejo, vou ter que visitar LGBT, vou ter que visitar porta de fábrica, porta de comércio. Eu vou ter que fazer muita reunião com os empresários – porque eu acho que os empresários estão acovardados.

As pessoas não saberem a importância da Petrobrás para o desenvolvimento desse país, as pessoas não entenderem que os bancos públicos são importantes para o desenvolvimento desse país é realmente covardia pura. Então, saibam que eu vou brigar muito. Você não sabe quanta vontade eu tenho de brigar.

O senhor está falando da sua vontade de brigar, mas a gente sabe que esse discurso de ódio, por toda a situação de crise econômica e social no nosso país, tem aumentado muito. Todo mundo conhece alguém que está com depressão, que está desanimado. A sociedade está adoecendo, em termos de saúde mental. Ao mesmo tempo, a gente vê que o senhor está preso, sozinho, lidando com a sua solidão. A gente sabe que o senhor teve perdas familiares nesse período, mas se mantém saudável, [anda] 10 km por dia, está bem de saúde. Qual a fórmula?

Olha, eu estou bem de saúde, faz um ano e meio que eu não faço meus exames de naquelas máquinas que você é fotografado por dentro. Eu não quero saber porque eu tenho a expectativa de sair e fazer meus exames. Mas eu tenho feito exames de sangue e eu estou perfeitamente bem, em todos os quesitos. Até a minha glicemia, que às vezes quando eu estava lá fora era 120, 110, 115, aqui estou com 97, 98, 95, está legal. O colesterol está bom, as vitaminas estão boas. O que eu sinto? Veja, eu sou um cidadão que nunca foi curtido pelo ódio. Se alguém quiser brigar comigo, pode brigar sozinho, eu não quero brigar. Eu brigo por coisa séria, e meu ódio é aquele ódio de segundos. Eu posso ficar com ódio por uma pessoa, mas eu esqueço isso.

Eu acho que a sociedade brasileira está sendo curtida por um mercado de mentiras como jamais ela viveu na vida, causado, obviamente, pela facilidade que se tem [de acessar informações], do avanço tecnológico, da internet, das redes sociais. Antigamente, o cara, para te xingar, tinha que te xingar pessoalmente – com medo de tomar um murro, te xingava para outro. Agora, um canalha entra no quarto dele e fala mal de você, da tua mãe, do teu pai, fala da mãe dele, fala do pai dele. Fala qualquer bobagem sem nenhum critério. É o que a gente está vendo. Como pode um presidente da República querer governar pelo Twitter? Como que pode eu levantar de manhã e tweetar, sem nenhuma responsabilidade de prestar contas daquilo que eu falo?

O presidente é tem alguma coisa pra falar? Manda chamar a imprensa e comunica oficialmente ao país: “Eu estou fazendo tal coisa”. Então, os avanços tecnológicos estão fazendo com que o ser humano perca o controle. Ele está sendo controlado. Pelo que eu vejo, é uma certa doença. Esse [fotógrafo oficial, Ricardo] Stuckert, que trabalhou comigo muito tempo, eu brigava muito com ele, porque o avião nem desligava o motor e ele pegava três celulares e ficava rodando para saber das coisas. Eu perguntava: “Por que você quer saber tanta notícia, você só tem que saber o que você vai usar, rapaz. Por que você precisa de tanta informação, se você não vai utilizar? A cabeça nossa tem um limite, então saiba apenas o que você vai utilizar, o que você vai trabalhar”.

Eu acho que hoje o mundo está louco, as pessoas não sabem mais viver sem [celular]. As pessoas vão no banheiro com o celular. A coisa mais habitual que você tem é ir em um restaurante com um grupo de pessoas, chegar lá e todo mundo pegar o celular. Aí o cara está conversando com o Canadá e você está na mesa com ele e você não vale nada. No diretório do PT, eu fico vendo na reunião da CUT, os dirigentes estão falando e o pessoal está [mexendo no celular]. Ou seja, você está sempre fora do ambiente em que você está presente. Isso é bom ou é ruim? Tem um lado que é bom: você hoje tem muito mais informação, facilidades. Mas tem muito mais acesso a bobagens, tem acesso à coisa que não presta.

Minha mãe dizia uma coisa: a mentira anda a cavalo e a verdade anda engatinhando. Você nunca vê um cara pegar o celular e mostrar uma coisa boa. É sempre uma sacanagem – vale pra homem e vale pra mulher. Estou aqui chutando, mas eu acho que é assim mesmo [risos]. Eu me preparei para não ficar escravo disso.

Então, eu acho que isso tem estimulado o ódio na sociedade. A quantidade de mentiras contadas é uma enormidade que a gente não tem controle. Era preciso que, em algum momento, houvesse uma regulação. Sem criar censura, mas que se fizesse uma regulação para ter um limite das bobagens que se fala. Eu não sei como é possível fazer isso, mas o que estou notando e, pelo que tenho lido, é que nós estamos virando uma sociedade de menos humanos e mais algoritmos. Ou seja, nós estamos virando um número. Então, as pessoas orientam e decidem o que a gente vai votar.

Eu li um livro, esses dias, sobre a eleição do Trump nos Estados Unidos, e é um medo que se repetiu aqui no Brasil. Ninguém explica alguém ter dois milhões de votos para deputado se não for uma mentira deslavada de fake news, martelando a cabeça das pessoas durante 24 horas por dia durante não sei quantos dias. Então, eu quero sair daqui com o propósito de tentar mostrar para a sociedade brasileira que ser bom e generoso é muito menos sofrível do que ser ruim e não ser generoso.

Falar com o coração é melhor do que falar pela irracionalidade do nosso cérebro, às vezes. É preciso colocar sempre uma dosagem de amor naquilo que a gente fala e quer. Não basta querer falar em amor na frente da câmera da televisão: você tem que falar em seu cotidiano. Falar “bom dia” para as pessoas. As pessoas, hoje, entram no elevador, pegam um táxi ou chegam no local de trabalho e não falam. Nós estamos virando uma sociedade de desumanos. Você entra em um lugar e não conversa com ninguém, fica no celular conversando com não-sei-quem. Não nota que tem gente perto de você.

Eu não estou fazendo críticas aos outros: começo a fazer críticas a mim. Quando eu estava em casa com meus filhos, a gente não conversava porque ficavam os netos cada um com seu tablet desenhando, os filhos cada um com celular jogando, e você ficava lá vendo eles brincar e você sozinho, sem ter com quem conversar porque eles estavam em outro mundo.

É possível conviver com isso sendo humano? Nós temos que fazer um sacrifício, porque, para mim, nada suplanta um aperto de mão, um olhar entre os seres humanos. É assim que a gente se conhece, não é pelo WhatsApp. É pelo aperto de mão.

Ao mesmo tempo, a gente tem exemplos de amor na sociedade. Tem as fortalezas quais se agarrar. A gente queria aproveitar e falar sobre o papel das pessoas que estão aí fora há tanto tempo fazendo uma demonstração não só de insurgência, mas também de admiração a você. O que isso impacta?

Eu ouço esses companheiros e companheiras todos esses dias que estou aqui. Todo santo dia. O “bom dia, Lula”. O “boa tarde, Lula”,o “boa noite, Lula”, as músicas… de vez em quando, vem um corneteiro. Eu, sinceramente, não tenho palavras. Acho que não existem palavras para agradecer esse gesto. Não sei se já houve na história da humanidade algum preso que teve essa distinção carinhosa das pessoas. Eu, se pudesse, pegava todos eles e fazia um chaveirinho de pendurar e andar com todos eles pendurados no meu corpo, porque eu não sei como vou me desfazer deles. E eu nem conheço eles! Então, quando eu sair daqui, o que eu quero fazer é o seguinte: é dar um longo abraço e um longo beijo em cada um deles. Pegar o endereço da residência, o telefone celular, porque eles passaram a ser uma parte da minha vida.

Não é normal os seres humanos terem a grandeza que essa gente teve. Eu já até falei para a Gleisi [Hoffmann] falar com eles para voltarem para a casa deles. Eu acho que é muito sacrifício para eles. Mas eles não querem nem ouvir falar nisso. Eu, sinceramente, não sei o que vou fazer com eles, porque é só gratidão que eu tenho por eles. De vez em quando, eu recebo um docezinho, um bolo. Eles estão me tratando com um dengo que eu nunca tive. Então, eu sou muito grato, inclusive à sociedade brasileira, pela solidariedade que eu tenho recebido do mundo inteiro. Ainda ontem(22), eu recebi uma carta de vários juristas do mundo inteiro que mandaram carta para o Supremo Tribunal Federal, de primeiros-ministros, ex-primeiros-ministros, sindicalistas…

Eu sou muito grato às pessoas que estão se manifestando no Brasil em solidariedade. E a única coisa que eu posso oferecer para eles é minha inocência. É a única coisa. Quem tem o carinho que eu tenho dessas pessoas não pode se curvar. Não posso aceitar “meia liberdade”. Eu quero dizer, em alto e bom som: se tem alguém culpado nessa história é o seu Moro, seu Dallagnol, os procuradores da força-tarefa, os delegados que fizeram o inquérito e o desembargador do TRF-4.

Eles precisam aprender que eles não julgaram um cidadão que não tem história. Eu sei porque eles me julgaram, me condenaram e mentiram. E é em nome de desvendar para a sociedade essas mentiras que eu estou aqui, com muito amor para dar, com muito carinho e com muita vontade de lutar. Por isso é que, às vezes, eu pareço duro. Às vezes, meus advogados até ficam preocupados, porque comigo não tem meia conversa. Em se tratando de honestidade, não existe uma pessoa meia honesta: ela é honesta ou não é.

Não existe meio caráter: você tem ou não tem. Eu digo para todo mundo que você não encontra caráter em bar, shopping ou comércio. Ou seja, caráter e dignidade você não compra, você tem. Você adquire como uma coisa sanguínea, e eu isso tenho, graças a Deus. Dona Lindú [mãe], muito obrigado por ter me dado o caráter que a senhora me deu. E Seu Aristides [pai], que eu tinha divergência, mas foi ele que engravidou minha mãe e que produziu essa coisa bonita que vocês estão vendo aqui.

É assim o meu mundo, querida.

Neste domingo (27), essas pessoas que estão multiplicadas em todo o país estão preparando uma grande festa de aniversário em vários pontos do território nacional. O senhor já está sabendo que vai ter bolo?

Eu estou sabendo. Vou até falar para o diretor aqui, o doutor Luciano, que ele poderia vir aqui na hora do aniversário, eu sair daqui com ele e ir lá, soprar as velinhas. São 74 velinhas, e eu não vou ter fôlego para assoprar tudo. Aí eu vou lá, vejo o aniversário, como um pedaço de bolo e volto para cá, não tem nenhum problema.

Não sei se vai ser possível. Mas, qual é o problema? Aqui não trabalham amanhã (24), sexta-feira e segunda. Na sexta-feira, vai ter uma dedetização e, na segunda, é feriado, ponto facultativo…. acho que deram o feriado para algumas pessoas aqui. Então, eu não tenho nem como receber o bolo. Vão ter que guardar o bolo para eu comer um pedacinho na terça-feira.

E vai ouvir o “Parabéns”.

Vou ouvir bem.

Eu estou triste por estar aqui, mas feliz por ter tantos amigos do lado de fora, tanta gente solidária. E a única coisa que eu gostaria era que as pessoas não deixassem destruir o país. Não há presidente que seja eleito para destruir o país.

A descoberta do pré-sal é a única coisa que pode dar a esse país a certeza que a nossa juventude vai ter um futuro, se você utilizar parte desse dinheiro para poder educar o nosso povo, para investir. Não pode deixar destruir isso. Não existe possibilidade de o país cuidar da economia se não tiver bancos públicos para poder incentivar e induzir o desenvolvimento.

O Estado não é um empresário, o Estado é apenas o indutor. Ele discute onde é melhor investir em função das necessidades do país, não em função das necessidades apenas do empresário. Do jeito que nós estamos fazendo, o Estado não vai ter papel nenhum. Lamentavelmente, estão destruindo o pouco de cidadania que nós conseguimos dar ao nosso país.

Acho que o Brasil viveu no meu período de governo o maior momento de protagonista que esse país já teve, em que o passaporte brasileiro era motivo de orgulho, o Brasil era chamado para os eventos, o Brasil dizia “sim” e “não” com a mesma altivez. O Brasil teve coragem de dizer que era contra a Guerra do Iraque, com o [George W.] Bush, na frente do Bush. O Brasil teve coragem de dizer que ia conversar com o [Mahmoud] Ahmadinejad no Irã para o [Barack] Obama.

O Brasil teve coragem de dizer que ia criar o Conselho de Segurança da Unasul, sem nenhuma preocupação. Hoje, o Brasil está subordinado. Graças a Deus, nós estamos com expectativa de que [Alberto] Fernandez ganhe na Argentina. Será o meu presente de aniversário. Do Daniel [Martínez] ganhar no Uruguai, e do Evo Morales ganhar, não sei se vai ter segundo turno, se não vai ter, mas eu acho que a direita está tão raivosa na Bolívia quanto esteve no Brasil. A direita está fazendo com o Evo o que o Aécio [Neves] fez com a Dilma, vendendo ódio. E quem vende ódio, não colhe brisa, não. Vai colher tempestade – o Aécio Neves que o diga.

Eu estou feliz porque o povo está começando a perceber as coisas, e eu quero sair daqui para ajudar. Eu acho que é um prejuízo para o Brasil eu estar aqui dentro, e ter tanto canalha solto lá fora, governando esse país. É assim que eu penso. Mas isso que eu estou falando pra vocês, eu não falarei lá fora. Lá fora, ninguém será canalha. Todo mundo será cidadão brasileiro, eminência, excelência. Tudo de acordo com os manuais de boa prática.

A gente tem uma última pergunta, na certeza de que suas palavras também inspiram todas as pessoas que estão lá fora e também organizando o seu aniversário no domingo. O que inspira o senhor? Um livro, um filme, uma música…

Quando eu vim para cá, algumas pessoas me aconselharam a escrever um diário. Eu sinceramente não achei vantajoso escrever, eu sozinho, vivendo sozinho todo dia, todo dia, ia escrever o quê? “Hoje, eu fui no banheiro, acordei cedo”.

Eu li o diário do [Nelson] Mandela na cadeia. Eu li a biografia de muita gente, do Getúlio [Vargas], do [Carlos] Marighella, do Padre Cícero de Juazeiro, do [Mahatma] Gandhi, do [Franklin Delano] Roosevelt. Acabei de ler a «Biografia a duas vozes», do Fidel Castro.

Uma coisa que me interessa muito é ler sobre a escravidão. Estou aprendendo porque o Brasil é do jeito que é, porque ainda existe preconceito. Eu sempre gostei muito de música e estou ouvindo bastante, recebo um pen drive com músicas.

Eu gosto muito de samba, eu ouço Chico [Buarque], ouço Caetano [Veloso], o [Gilberto] Gil, ouço muitas músicas daquelas, como chama, cânticos gregorianos. Às vezes, eu durmo com cantos gregorianos. Eu recebo muita coisa. E muito debate também.

Eu peço a alguns companheiros que gravem análises de conjuntura para mim, então às vezes o João Paulo [Rodrigues, da direção nacional do MST] grava uma análise de conjuntura, às vezes o [José Genoino] me grava, a [Marilena] Chauí me grava, o [Luiz] Dulce me grava, a Gleisi [Hoffmann] me grava, o Jessé [de Souza], o Eduardo Moreira, o Aloizio Mercadante. Eu vou pedindo às pessoas, que vão gravando.

Como não tem o que fazer, ou sento para ler, ou eu sento e fico vendo as pessoas falarem, fico discutindo sozinho com as pessoas, discordando das pessoas. Às vezes, eu fico “puto” como as pessoas falam bobagens a meu respeito. E eu não estou lá para dizer: «Não é assim, rapaz».

Assim eu vou vivendo. Eu vou dormir por volta de meia-noite, uma hora da manhã. Eu acordo todo dia às seis e meia da manhã, faço meu café, faço um café de qualidade. Acho que não tem ninguém que faça um café melhor do que eu.

Quero que vocês saibam que essa história de eu falar que vou casar é verdade. Na verdade, eu encontrei uma meia cara que está me ajudando a vencer essa barreira aqui. Então, eu não vou deixar a solidão tomar conta de mim, não vou deixar o ódio tomar conta de mim, não vou desanimar, não vou ficar deprimido. Eu não conheço a palavra depressão. Se eu já tive, eu não sei.

Como eu fui corinthiano e fiquei 23 anos sem ganhar um título, perdendo para o Santos quinze anos consecutivos, vendo Pelé humilhando o Corinthians – eu ia ao estádio, chegava lá e dava 3 a 0, 4 a 0 – então eu acho que não vou ter depressão.

Eu tenho certeza, posso dizer pra vocês comunicarem o pessoal lá fora que eu vou sair mais maduro, mais preciso naquilo que eu quero fazer, vou sair mais lutador do que eu fui.

Estou bem fisicamente. Obviamente que eu sei que a natureza é implacável, mas como eu me decidi que vou viver até os 120 anos, que a «Caetana» não venha bater na minha porta, que não tem espaço para ela entrar [referência ao livro “A Moça Caetana – A Morte Sertaneja”, de Ariano Suassuna”]. Eu tenho muita coisa pra fazer ainda.

Então, eu estou assim, nesse momento da minha vida. Obviamente, eu fico sonhando em sair daqui, decidir onde eu vou morar. Quando eu deixei a Presidência, tinha vontade de morar no Nordeste, vontade de voltar para o meu Pernambuco, vontade de morar não perto da praia, mas num lugar em que eu pudesse ir à praia. Pensava em ir para Bahia, Rio Grande do Norte, mas a Marisa não quis ir porque ela nasceu em São Bernardo [do Campo], e o mundo dela era São Bernardo. Eu não tenho mais o que fazer em São Bernardo.

Eu, quando sair daqui, eu quero… Não sei pra onde ir, mas eu quero me mudar pra outro lugar. Eu quero viver. Eu espero que o PT me utilize, espero que a CUT me utilize, espero que os sem-terra me utilizem, espero que os LGBT me utilizem, espero que os quilombolas me utilizem, espero que as mulheres me utilizem, espero que todo mundo me utilize para fazer com que eu tenha utilidade nessa minha passagem pelo planeta Terra.

Então, é isso. Vou sair daqui tranquilo. Não vou dizer que cumpri minha missão, mas vou sair daqui tranquilo, como cidadão consciente do seu papel na história.

Sou muito agradecido às manifestações dos artistas. Eu tenho visto pelo pen drive shows no mundo inteiro. Aliás, eu acho que o PT e os movimentos sociais deveriam fazer da questão cultural uma das bandeiras mais importantes. A gente não pode deixar que esses caras destruam a cultura. A cultura não tem propriedade do Estado. A cultura é uma prioridade da sociedade, ela que se aproveite da cultura e a criatividade que o nosso povo tem nesse país. Não podemos abdicar disso.

É isso que vocês vão levar daqui. Quero que vocês digam pra todo mundo que eu estou bem, estou muito disposto a brigar. Eu tenho certeza de que o Moro não dorme com a consciência tranquila como eu durmo. Eu tenho consciência de que o Dallagnol está precisando tomar remédio para dormir, talvez tarja preta, porque ele sabe que é mentiroso, ele sabe que foi canalha no meu processo. Então, eu estou aqui, para a raiva deles. Porque acho que eles ficam com mais raiva quando eles percebem que eu estou bem. Então, muito obrigado. Quero que vocês transmitam um abraço a todo mundo. Quando eu sair daqui, espero que a gente faça uma boa entrevista – e um churrasco.

Um abraço para todo mundo.

Até um livro que eu li, que me impressionou muito, chamado «Um defeito de cor», de uma moça chamada Ana Maria Gonçalves. Eu li «Escravidão», do Laurentino Gomes, muito bom. Eu tenho lido muito…. Como se chama? Do nosso guru lá, que eu li, da escravidão, daquele companheiro que viajava para lá e para cá, «O alufá Rufino» [livro escrito por Flávio dos Santos Gomes, João José Reis e Marcus J. M. de Carvalho]. É muito bom.

Então, esse é um tema que me apaixonou, porque eu nunca consegui entender, não sei se vocês lembram, quando eu era presidente, a gente tentou, foi aprovada uma lei, o Fernando Haddad [então ministro da Educação] deve se lembrar disso, para ensinar a história africana no Brasil, que era umas formas que eu achava que a gente iria vencer o preconceito nesse país. Não sei se aconteceu, não sei se não aconteceu. Pelo que eu estou vendo, até universidade afro-brasileira está sendo destruída lá em Redenção [no Ceará]. Eu acho que eles estão desmontando isso. Mas eu estou aprendendo muito. As pessoas são muito generosas, as pessoas mandam muitos livros, muito material importante.

Esses dias, recebi uma cartinha bonita daquela menina que está em Oxford, que ela participou da equipe daquele médico que ganhou um prêmio Nobel de Medicina; uma menina do Rio Grande do Norte que está com ele, é brasileira. Ela mandou uma cartinha bonita. Eu recebo muita coisa bonita, muita gente generosa.

Eu não sei se vou ter força para abraçar todo mundo quando eu sair daqui. Se a minha bursite não voltar…

Brasil de Fato


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