A revolução digital e transformações sociais – Por Stefano Quintarelli

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Por Stefano Quintarelli*Intermediated of the world, unite!Intermediati di tutto il mondo, unitevi!Intermediados del mundo, unìos!Intermediados do mundo, uni-vos!Intermédiés de tous les pays, unissez-vous!

A revolução industrial levou a uma profunda reorganização social no que diz respeito ao modelo econômico anterior, predominantemente agricultural. Muito concentrado, o poder econômico condicionou o poder político. Nos Estados Unidos, os assim chamados robber barons, graças a seu controle sobre o petróleo e o aço, fortaleceram seu poder econômico em grande parte por meio do controle da economia e da sociedade. A classe trabalhadora de assalariados surgiu e, com ela, o conflito com os capitalistas que detinham os meios de produção. A pressão do mercado foi exercida sobre os trabalhadores que, não raro, viviam nos limites da subsistência, e os conflitos sociais, que por vezes resultavam em movimentos violentos, foram intensificados. Os ricos oligarcas condicionavam a informação, o poder político e o judiciário. Graças ao poder que possuíam, não mitigado pelas instituições e regulamentações protetivas, volume adicional foi acumulado pelo capital, em detrimento dos trabalhadores.

A partir da metade do século dezenove e pela maior parte do século vinte, o mundo dividiu-se a respeito de soluções alternativas ao conflito na distribuição do valor entre capital e trabalho.

O paradigma desse conflito foi resumido nas palavras finais do Manifesto Comunista de Marx e Engels que terminava com a famosa frase “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”.

Uma resposta dos estados socialistas foram as empresas estatais, desconectadas do mercado com o objetivo de isolar a pressão sobre os salários, junto da regulamentação estrita das relações de trabalho mediadas pelo Partido. No Ocidente prevaleceu um modelo mais articulado de regulamentação que viu a emergência de instituições tais como os sindicatos, com seu direito à greve; intervenções legislativas que definiam direitos mínimos e inalienáveis para trabalhadores em matéria de trabalho, aposentadoria e saúde; a possibilidade progressiva de participação dos trabalhadores na propriedade disseminada de empresas; o nascimento da Autoridade Antitruste para mitigar o poder econômico e, com isso, a influência de poderes econômicos na política. O modelo Ocidental que emergiu vitorioso no final da utopia Soviética foi, no entanto, levado à lona com a Revolução Digital e precisa ser repensado ou, ao menos, de intervenções significativas.

Computadores: de onde viemos, para onde vamos

A pesquisa de base leva a desenvolvimentos na física que, por sua vez, são incorporados em aparelhos eletrônicos que utilizamos todos os dias. A famosa Lei de Moore prevê crescimento exponencial de capacidade de processamento, arquivamento e comunicação, graças à duplicação periódica da proporção desempenho/preço de aparelhos eletrônicos, motivada pela capacidade de criação de componentes de base cada vez mais miniaturizados. O custo marginal de processamento, arquivamento e comunicação torna-se, portanto, substancialmente (ou rapidamente) nulo e as possibilidades, cada vez maiores. Inteligência artificial é o termo cunhado para identificar o produto do crescimento exponencial das possibilidades de processamento; Mercado de Dados para identificar as possibilidades de armazenamento em larga escala; Internet das Coisas para a possibilidade de interconexão. Tudo isso em um jogo de sinergia que permite, em velocidades cada vez maiores, aparelhos cada vez mais baratos e mais interconectados; dados relacionáveis são gravados, arquivados, analisados e processados. Alguns visionários acreditam chegará a época em que máquinas terão capacidades superiores às do ser humano e seres humanos incluirão, em sua maioria, partes eletrônicas para recuperar ou aumentar suas habilidades. Esse momento de convergência humano-eletrônica é chamado singularidade. A continuidade desse crescimento exponencial a longo prazo em direção à singularidade é, de qualquer modo, um ato de fé. As diretrizes da ITRS (Diretrizes de Tecnologia Internacional para Semicondutores — International Technology Roadmap for Semiconductors, em inglês) são o plano de desenvolvimento definido pelos fabricantes de eletrônicos e assinala 2021 com o ano em que o limite físico da miniaturização será alcançado. A miniaturização de componentes eletrônicos não poderá ir adiante devido à interferência quântica em dimensões atômicas.

Os proponentes da singularidade respondem que esse limite será superado e o desenvolvimento exponencial continuará graças à invenção de algo ainda não imaginado. Isso é um ato de fé.

De qualquer modo, mesmo se a singularidade não for alcançada, os efeitos na sociedade serão muito significativos. Uma vez alcançado o limite físico do desenvolvimento, a competição que não poderá mais ser expressada em aumentos de desempenho será expressada em reduções de preço e os aparelhos eletrônicos permearão o mundo em escala de difícil compreensão. Nossa habilidade de acessar nossos sistemas de computação, de armazenamento de nossos dados e sua comunicação não será mais fisicamente confinada a nossos aparelhos, mas disseminada. Nosso “computador” será definido por nossa habilidade de acessar tais processamento e dados disseminados, por meio do reconhecimento de nossa identidade (o maior dos ativos competitivos), onde quer que estivermos.

Do computador em nossas mesas, do computador em nossos bolsos, chegaremos — literalmente — a viver em um computador. Graças ao custo marginal zero, tudo que puder ser calculado o será; tudo que puder ser apreendido e arquivado o será. Tudo que puder ser interconectado o será.

Onde estamos

Todos esses fenômenos foram acelerados ao longo dos últimos doze anos, com o desenvolvimento de redes sem fio de telefonia móvel, em um círculo virtuoso de aumento de possibilidades fomentado pela sinergia do aumento na capacidade de processamento de servidores, da capacidade de transmissão de redes, da capacidade de processamento de computadores de bolso (smartphones). Tudo isso acompanhado por uma velocidade sem precedentes de difusão de meios técnicos, por meio da democratização de acesso às tecnologias. Em cada sistema onde a informação é introduzida, a entropia diminui e o sistema é otimizado. Nossa habilidade de resolver problemas, de otimizar o uso de recursos, aumentou enormemente nos últimos anos. Basta pensar na disponibilidade da informação e na possibilidade de colaboração de pesquisadores nos setores médico, de energia e de alimentos; na otimização do transporte e da logística graças a sistemas de navegação com coordenação e conhecimento totais, ao controle minucioso da produção e à redução de inventário; à desmaterialização de muitas atividades, reduzindo o impacto material no planeta.

Por mais de dez mil anos o mundo passou por mudanças drásticas, mas muito lentas, que precisaram de gerações para se desenvolverem, permitindo que a sociedade as compreendesse e as adaptasse (ainda que por vezes tais adaptações fossem violentas).

Nesse caso, esse desenvolvimento de economia intangível foi repentino. Parece que a Divina Providência interveio em um mundo que consome recursos materiais em um nível muito acima das possibilidades de sustentabilidade, oferecendo ferramenta de otimização incomparável.

Cada um dos setores da vida humana foi impactado e, portanto, muitas das complexidades que enfrentamos hoje estão enraizadas nessas razões.

Macrofenômenos da dimensão imaterial

Uso os termos dimensão material e dimensão imaterial e não mundos real e virtual. Não são mundos, mas dimensões, porque toda atividade humana anteriormente baseada em instrumentos e relações materiais é de certo modo tocada pela imaterialidade. Exceto em alguns casos de total substituição de atividade material anterior por sua nova modalidade intangível, em geral o imaterial não exclui o material mas o integra, suplementa-o da mesma maneira que o comprimento não é uma alternativa à largura, mas a suplementa.

E tudo é muito real, não virtual. O termo “virtual”, do latim medieval virtualis, traz consigo conotação de potencialidade não expressada. Mas essa dimensão material, em que relações sociais, políticas e econômicas têm lugar, é bastante real, não potencial ou não expressada.

As regras básicas da dimensão imaterial são muito diferentes daquelas da dimensão material. Na dimensão material tradicional, produzir, reproduzir, armazenar, transferir e manipular têm custos (econômicos e ambientais) significativos. Nessa recente dimensão imaterial esses custos são marginais ou zero. A materialidade é intrinsecamente desconectada, pois é composta de objetos que não se comunicam uns com os outros; suas limitações requerem tempo para serem superadas, causam desgaste e seu retorno tende a diminuir. O imaterial, que é intrinsecamente conectado, é caracterizado pelo feedback em tempo real (e, portanto, pela possibilidade de coleção, análise, customização e adaptação de dados), pela ausência de desgaste e pela possibilidade de retorno crescente.

Exceto nos casos de grande padronização e repetitividade, assistida por máquinas específicas, o trabalho na dimensão material é desempenhado por pessoas que precisam de ferramentas de produção, comandos para continuarem, ciclos de descanso e lazer. Com a revolução industrial, isso levou à definição de turnos de trabalho e deslocamento para o desempenho das atividades, com impactos consequentes na estrutura de cidades, comércio, etc.

Um trabalho que pode ser realizado na dimensão material, se repetitivo, pode ser realizado por máquinas que não precisam de turnos; se com componentes de criatividade e relacionalidade, pode ser realizado por pessoas em qualquer lugar do mundo, que também se beneficiam do efeito dos fusos horários para cobrirem o dia.

O cordão umbilical digital que liga as partes em uma relação imaterial é explorado para atualizar os serviços e produtos fornecidos com saída frequente e é customizado graças à aquisição e conhecimento de dados. Essa personalização vai além do indivíduo, colocando novas questões para a disponibilidade de dados como ativo competitivo.

Até agora, a informação em comum disponível a uma comunidade sempre foi fator importante na manutenção de coesão e harmonia, e até mesmo favoreceu a definição de ritos sociais. Com a personalização individual do fluxo de informação, o papel da mídia de agir como metrônomo social se erode. A personalização da informação recebida por usuários, com os atuais incentivos daqueles que administram os algoritmos, determina a exclusão de informação indesejada e aumenta a frequência de mensagens confirmando suas convicções e preconceitos, favorecendo a aquisição de informações desejadas com as chamadas “bolhas de filtros” (bolhas de informação filtrada), independentemente de seu grau de verdade e correção. O custo marginal nulo da produção e distribuição da informação eliminou as barreiras econômicas que constituíam limite para sua criação e circulação; a redução nas barreiras potenciais que constituíam limites para a disseminação da informação multiplicou em ordens de magnitude o espalhamento de notícias falsas que alimentam bolhas de filtro. A acessibilidade da informação de cada assunto, até mesmo tópicos especializados, anteriormente limitadas aos participantes das comunidades respectivas, é agora onipresente a custo zero, alimentando a percepção de extrema redução da distância entre especialistas, entusiastas e leitores casuais. Isso leva à percepção do achatamento de hierarquias que fomentam a trivialização da experiência, um efeito multiplicado pelos algoritmos dos intermediários da informação cuja função objetiva não é a correção da informação, mas a maximização do tempo gasto por usuários em seus serviços online. O fato que isso produz na política é bem conhecido: do ressurgimento das interações orientadas pela ênfase (também determinadas pela impulsividade favorecida em tempo real e uma errônea percepção da anonimidade favorecida pelo isolamento e pela mediação instrumental da comunicação). Os efeitos nos resultados eleitorais são menos conhecidos, ainda que o Facebook tenha conduzido experimentos sociais que demonstraram seu poder de influenciar a taxa de participação no voto e que, recentemente, Zuckerberg tenha dito, em carta escrita ao Parlamento Europeu, não poder excluir a possibilidade da rede social ser usada de modo a produzir efeitos manipulativos nos votos.

A propriedade privada, a fundação do modelo Ocidental de resposta aos desafios da industrialização, é enraizado nas propriedades intrínsecas de materialidade em que produtos são rivais e exclusivos. Consequentemente, os ativos são portadores de direitos, imunidades, faculdades e privilégios definidos e codificados em leis que são baseadas em rivalidade e excluibilidade. O todo do sistema legal também é baseado nessas duas características; O controle dos ativos na dimensão imaterial não tem base na rivalidade e na excluibilidade. Uma informação, quando comunicada a um terceiro, não diminui a possibilidade de ser desfrutada por parte do comunicador. O aforisma do presidente Thomas Jefferson é famoso: “aquele que recebe uma ideia de mim, recebe instrução para si sem que se diminua a minha; assim como aquele que ilumino recebe luz sem me escurecer”. Para manter controle e replicar a rivalidade e a exclusividade, um ativo ou serviço intangível não é colocado em total disponibilidade a seu destinatário como ocorre com ativos tangíveis, mas, frequentemente, se o modelo de mercado e de negócios permitir, é fornecido em conexão com um controle centralizado e invariavelmente acompanhado por um contrato que regula em detalhe os direitos, imunidades, faculdades e privilégios, os quais, em um cabo de guerra bastante assimétrico, invariavelmente favorece aqueles que fornecem o bem ou serviço em detrimento de seus usuários. Na dimensão imaterial, a propriedade privada, para os usuários, não existe.

Feudalismo tecnológico

A partir dos anos noventa do último século, enquanto o caminho exponencial das tecnologias digitais (cálculo, arquivamento, comunicação) começou a se evidenciar, criadores de políticas decidiram favorecer seu desenvolvimento. Havia discussões sobre uma sociedade da informação com a ideia — correta — de que ela teria menor impacto nos recursos globais do que o modelo de desenvolvimento baseado na economia material.

Regras assimétricas foram criadas para promover a competitividade e, com ela, o nascimento e o crescimento de operadores de telecomunicação e fornecedores de serviços alternativo. As modalidades da monetização ainda não eram claras, nem eram os modelos de negócios, e tampouco era a época em que se atingiria massa crítica capaz de sustentar uma economia imaterial. Pouco a pouco essas nuvens se dissiparam. A massa crítica foi alcançada anos atrás e, com ela, os modelos de negócios e as possibilidades de monetização tornaram-se muito claras.

Por escolha, regras pró-competitividade não foram introduzidas por que se acreditou que retardariam ou impediriam o desenvolvimento. Regras foram introduzidas a respeito da propriedade intelectual e invasão de sistemas, responsabilidade editorial, proteção às crianças, etc., mas não em termos de contendibilidade de usuários e competitividade.

Empreendedores aprenderam a explorar esses regulamentos em sua vantagem ao usarem leis de propriedade intelectual para impor condições contratuais restritivas para seus usuários, valendo-se de efeitos de rede para beneficiar o aumento de sua renda (convencer o primeiro usuário, que precisa ser persuadido, custa muito mais que não convencer o bilionésimo usuário que deseja ser admitido na interação com outros e espera nunca ser dela expulso) e introduzir fatores de adesão (limitações de fato nos serviços) para coibir a mobilidade dos usuários.

Enquanto em outras indústrias impusemos a portabilidade de número de telefone, crédito, empréstimos bancários, eletricidade ou gás, para promover a competição, esse não é o caso das redes.

Consequentemente, aqueles que conquistam a dominância do mundo em um setor dificilmente podem tê-la reduzida. Tentem mandar seus filhos deixarem o Whatsapp e passarem a usar o Indoona. Eles jamais o farão. Pelo Whatsapp eles podem interagir com todos os seus amigos; enviá-los ao Indoona seria o mesmo que os condenar a uma ilha quase deserta. O mesmo se aplica a lojas em relação a Amazon, hoteleiras em relação ao Booking, restaurantes em relação ao Thefork, imobiliárias em relação ao AirBnb, motoristas em relação ao Uber e assim por diante. Quando um operador está prestes a ganhar um setor da indústria, investidores injetarão quantidades enormes de capital de modo a torná-lo sua escolha de fato. A competição deixa de ocorrer dentro do mercado, mas em proldo mercado. Não se compete pelo mercado de corretagem de casas de veraneio, senão para conquistar posição de liderança absoluta e inabalável em determinado nicho de mercado.

Os custos de marketing da adoção de um serviço são hoje o investimento mais importante para um operador intangível, maior em ordens de magnitude do que para os operadores tecnológicos. Eles não são operadores tecnológicos, eles são intermediários de mercado que interceptam uma fatia do valor que flui entre produtores e consumidores. Isso cria mercados oligopolísticos ou monopolísticos de dois lados, com intermediários que ditam suas próprias leis, de um dos lados, consumidores que possuem pouca ou nenhuma escolha e, do outro, produtores que devem obedecer a essas regras para ganhar acesso ao mercado. Quantas pessoas sabem que, se alguém baixar um software e o instalar em um Macintosh, o pagamento irá para o produtor do software, ao passo que, se é feito em um iPad ou iPhone, 30% desse valor irá para a Apple? O mesmo se aplica a um jornal, uma canção, um livro na Apple, Android ou Amazon. Ou que 25% do valor do quarto (incluindo impostos e taxas) vão para o Booking? — quase 100% da margem de lucro da hoteleira, que deve ainda pagar custos de manutenção e — não um detalhe pequeno — sua equipe? Quem conhece as condições de trabalho de um motorista de Uber ou Foodora? Não quero dizer que estas não são oportunidades para trabalho ocasional que podem constituir renda suplementar para alguém em determinado momento de sua vida. Se deixarem de ser ocasionais e se tornarem contínuas, sujeitas a controle algorítmico muito mais forte do que fora anteriormente possível em uma relação de trabalho tradicional, um problema surge: assimetrias regulatórias que favorecem um tipo de atividade em detrimento de outra por meio do desvio do foco do plano competitivo na direção de intermediários oligopolísticos ou monopolísticos.

Do lado dos monopolistas/oligopolistas imateriais

Agora vamos ficar do lado dos monopolistas/oligopolistas imateriais. Eles foram bons. Eles tiveram uma ideia, uma visão, determinação e capacidade de entrega muito maior que a de seus competidores. Eles conquistaram uma posição dominante em um novo nicho de intermediação imaterial graças a seu trabalho duro, ótimas habilidades e grandes capitais (no início, até que ficasse claro aos capitalistas empreendedores quem seriam os vencedores, estreitando o cerco). Agora eles são monopolistas (ou talvez oligopolistas); eles controlam mercados verticais online em nível global, também determinando preços em mercados offline e, portanto, no resto da economia; extraem valor dos intermediários dos produtores (de ambas as categorias tradicionais do capital do século XIX e dos conflitos de trabalho; governam o acesso ao mercado por meio do controle das plataformas (baseadas em contratos que impõem sua força contratual e exploram a proteção de leis de propriedade intelectual, de sua disponibilidade e da ordem em que as ofertas são exibidas e, em alguns casos, da moderação de comentários); em alguns casos cobram valores por uma intermediação, em outros por meio de leilões que organizam por um serviço que oferecem e nos quais as ofertas são totalmente opacas; beneficiam-se de efeitos de rede que reduzem o custo de aquisição de clientes e vedando a contestabilidade dos limites a todos os concorrentes; valem-se de regulamentações que os isenta da responsabilidade de controlar ofertas e conteúdos propostos; podem transferir margens de lucro de um país a outro graças a royalties de propriedade intelectual e à ausência de organizações estáveis em países onde têm clientes (indo “à compra” de impostos por meio da escolha do lugar onde pagarão menos impostos, erodindo a capacidade tributária dos estados); beneficiam-se de economias de escala quase infinita, graças a custos marginais e/ou custos variáveis nulos; controlam o desempenho das atividades de produtores de valor (capital e trabalho) graças a ferramentas tecnológicas; estabelecem condições de trabalho para relações ocasionais com grau de controle superior àquele normalmente existente em relações de trabalho tradicionais; unilateralmente impõem condições de fornecimento não negociáveis a provedores de produtos e serviços profissionais agenciados por eles; beneficiam-se de terceirização e da flexibilidade de relações com os vários tipos de seus colaboradores, explorando a porosidade de perímetros empresariais determinados pela computadorização de atividades; intermedeiam ofertas entre operadores não profissionais que reduzem os direitos e proteções dos consumidores, especialmente os mais vulneráveis; influenciam a formação da opinião pública graças a algoritmos que filtram a informação apresentada aos usuários ao encerrá-los em “bolhas de filtro”; mantêm acesso ao mercado de competidores putativos por meio de restrições contratuais impostas, explorando as regulamentações da propriedade intelectual (como as app stores); graças às propriedades intrínsecas da imaterialidade, escapam de direitos, deveres, privilégios e imunidades da propriedade privada, superimpondo seus termos e condições contratuais; beneficiam-se do acesso à finanças graças ao acesso privilegiado ao mercado de capital de risco, que é comumente interconectado com uma rede de interesses administrados sinergicamente, e a lista de aspectos não se esgota…

Revolução digital e Infoplutocracia

Entramos no mérito de uma questão que é essencialmente política. Definindo política como ferramenta para alcançar metas futuras socialmente desejáveis.

Não podemos mais limitar a análise ao capital e ao trabalho, precisamos também incluir a informação na equação e a revolução digital que a expressa.

Podemos pensar em um futuro no qual, para cada atividade econômica desenvolvida por produtores — capital e trabalho — aqueles que controlam a terceira variável — informação — são poucos intermediários monopolistas/oligopolistas (monopsonistas/oligopsonistas) que extraem valor do controle da intermediação, retirando o valor do capital e, consequentemente, do trabalho?

O capitalismo encontrou maneiras de balancear o conflito entre trabalho e capital que ultrapassaram o modelo socialista/comunista de coletivização dos meios de produção.

Em poucos anos, o conflito tradicional entre capital e trabalho tem sido envolvido e dominado por outro conflito, um conflito com a informação que, por meio do controle da intermediação, pressiona ambos.

Em poucos anos, as cinco maiores empresas no mundo são operadores que dependem de sua dominância da intermediação de algum mercado vertical. Três empreendedores controlam um império econômico superior aos de muitos estados membros da OCDE.

Estamos observando uma monopolização do domínio de relevância da dimensão imaterial sobre a dimensão material, na criação e na distribuição de renda, com um conflito em ascensão entre intermediadores e intermediados, com a compressão de direitos e garantias para grandes grupos sociais e com significativa influência política.

Um domínio que podemos definir como “infoplutocracia”.

A infoplutocracia dos intermediadores, tanto em termos de dados (implicações à privacidade são um epifenômeno) e dos processos por meio dos quais tais dados são coletados, processados, comunicados e utilizados.

É um modelo oposto àquele em que a Internet surgiu e foi desenvolvida.

Por muitas décadas, a Internet foi construída em protocolos, regras públicas que todos poderiam incorporar em seus software, que estabeleciam as formas por meio das quais computadores (servidores e clientes) se comunicavam, e qualquer um poderia construir clientes e servidores e competir. A telefonia também foi baseada em modelos similares, dos aparelhos (telefones, mesas de telefonia, câmbios, etc.) aos dispositivos de rede usados por operadores e os serviços neles desenvolvidos. Dois exemplos amplamente conhecidos são as mensagens de texto e o e-mail. Uma descentralização baseada em ampla variedade de servidores e clientes que interoperavam de modo que qualquer um poderia enviar um SMS ou um e-mail a outro sem se preocupar com a operadora ou com o serviço usado por seu destinatário. Um exemplo oposto são o Whatsapp, o Facebook, o Instagram e o Snapchat; serviços centralizados que podem ser usados somente por meio da adesão ao mesmo serviço único administrado por um único operador.

Essa abordagem fechada, uma vez estabelecido o domínio planetário, reduz a concorrência e reduz a biodiversidade da infoesfera, com os efeitos descritos acima. O oposto do espírito de abertura e máxima contendibilidade de usuários que deu luz e desenvolveu a Internet tão rapidamente.

Os efeitos da revolução digital se estendem a todos os mercados intermediados por operadores monopolistas/oligopolistas e monopsonistas/oligopsonistas.

Em resumo, o conflito entre capitalistas e trabalhadores induzido pela revolução industrial dos séculos XVIII e XIX se desenvolveu na relação entre capital e trabalho com ideologias opostas que, após muitas décadas, viram a prevalência sobre o modelo comunista/socialista, do modelo de capitalismo de massa temperado com regras de proteção e garantias para consumidores. O debate entre a esquerda e a direita do espectro político se desenvolveu ao ponto de equilíbrio entre elas.

O conflito entre intermediadores e intermediários induzido pela revolução industrial do século XXI se desenvolve na relação entre informação e produção (entendido como o produto de capital e trabalho) e está iniciando um confronto social entre um modelo de administração de informação centralizada que se desenvolveu nos últimos anos (e auxiliado por grandes multinacionais tecnológicas) e um modelo descentralizado promovido por algumas vanguardas (filosóficas, tecnológicas, políticas, etc.), um debate com diferenças profundas entre aqueles que defendem sistemas e ambientes fechados e aqueles que lutam pela descentralização, para fomentar maior concorrência e possibilidade para contestabilidade de usuários.

Representando os conflitos de outra maneira:
Conflito anterior: Capital vs. Trabalho
Novo conflito: Informação vs. (Capital e Trabalho)

Que futuro queremos imaginar?

Por quanto tempo será possível não detectar essa “infoplutocracia” e esse novo conflito entre intermediadores e intermediários? Seremos capazes de permitir por muito tempo que ela se expanda, por todos os lados, a outros setores da economia, esperando que uma nova mão invisível resolverá os problemas?

Alguém acha que é possível desinventar tecnologias digitais e a Internet que é sua expressão? Ou podemos pensar em metas socialmente desejáveis que requerem intervenção política? E que tipo de intervenções?

A redução de impostos, o condicionamento da opinião política, as pressões sobre os operadores tradicionais são, de fato, apenas representações de diferentes pontos de vista do mesmo fenômeno: a prevalência de informação monopolística/monopsonística no capital e no trabalho.

Acredito não haver resposta simples para esses problemas, como aumentar impostos, tal como desejam alguns. Esses custos adicionais, exceto alguns casos, seriam transferidos aos consumidores ou produtores.

Em alguns casos tem sido proposto construir “campeões do estado” (tais como um motor público de pesquisa, ou uma rede social ou plataforma pública para ofertas profissionais). Em outros casos também foi proposto considerar as redes sociais como infraestruturas sociais não duplicáveis e alguns até mesmo propuseram a nacionalização. Essas são hipóteses que me trazem à mente a respostas soviéticas da industrialização por meio de empresas estatais.

Não acredito que tais medidas com fragrância totalitária funcionariam; acredito que poderiam gerar problemas maiores para áreas adjacentes (do controle social à vulnerabilidade da privacidade e outros direitos fundamentais) do que aqueles que tentam resolver.

Acredito que precisamos responder como a sociedade Ocidental respondeu à revolução industrial, isto é, com mais intervenções orientadas ao mercado, favorecendo menos concentração de informação e regulamentação de externalidades negativas. Acredito que não devamos ceder à lógica da inevitabilidade dos sistemas fechados e devemos nos manter firmemente no lado da abertura.

Para enfrentar a revolução digital precisamos de um pacote compreensivo de medidas baseadas em princípios do que já fizemos no período da revolução industrial: novas formas de tributação, inovações no bem-estar social, direitos do trabalhador, controles públicos com garantias para consumidores e, fundamentalmente, concorrência aumentada, rulas pró-concorrência, contendibilidade de usuários, interoperabilidade de serviços, etc.

Mas isso dificilmente pode ocorrer sem consciência desse novo conflito de intermediação entre a informação de um lado e a produção (isto é, a combinação de capital e trabalho) do outro e sem essa consciência se traduzir em ação política.

Para que essa ação política ocorra, é necessário para os intermediários exigi-la por meio de sua conscientização:

Intermediados do mundo, uni-vos!

(*) Stefano Quintarelli foi membro do parlamento italiano na XVII legislatura, membro da Comissão de Direitos da Internet na Câmara dos Deputados, líder do Intergrupo Parlamentar para Inovação Tecnológica. Contribui regularmente para a Pontifícia Academia de Ciências, presidente do grupo orientador da Agencia Digital Italiana. Expert do High-Level Expert Group on Artificial Intelligence da ComissãoEuropéia, e membro do Leadership Council of the Sustainable Development Solutions Network para as Nações Unidas. Autor de numerosos artigos e contribuições, conferencista em numerosos eventos sobre tecnologia digital, regulação e competição. O seu interesse cruza tecnologia, regulação e mercados. 

(Tradução de Rodrigo Bravo)