A falsa metodologia do consumo arrasa os direitos humanos – Por Eduardo Camín
Por Eduardo Camín*
Em matéria de direitos humanos, o Chile vive há mais de vinte anos um aumento de mobilizações dos povos indígenas, reivindicando o respeito por seus direitos à terra, aos recursos naturais e ao reconhecimento de sua nação por parte do Estado.
O povo mapuche, que é o povo originário mais organizado politicamente, vem enfrentando há décadas os diferentes projetos de investimentos das sociedades multinacionais, nos setores hidroelétricos e da indústria florestal. A intensificação dessa luta pelos recursos naturais contra as empresas privadas, às vezes com a cumplicidade do governo, faz com que as comunidades indígenas tentem proteger suas terras tradicionais, passando a ser os principais objetivos de uma perseguição.
Neste sentido, o Centro Europa-Terceiro Mundo (CETIM), em colaboração com o Comitê Ético Contra a Tortura e com o coletivo chileno Novas Gerações, apresentou uma declaração escrita sobre o fenômeno da criminalização das lutas reivindicatórias do povo mapuche no Chile. A declaração lembra também que o governo chileno utiliza uma lei antiterrorista, herança da ditadura militar, para reprimir os dirigentes mapuche e criminalizar as demandas legitimas do seu povo.
O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas foi informado, em setembro de 2017, que se utilizou a lei antiterrorista para acusar o porta-voz da Coordenadora Arauco Malleco, Hector Llaitul, com uma absurda montagem, utilizando provas falsas preparadas pelos serviços de inteligência, para envolvê-lo em um suposto esquema de tráfico de armas entre Chile e Argentina.
Héctor Llaitul teria que estar em Genebra para apresentar seu caso ao Conselho, credenciado pelo CETIM e convidado pelo coletivo Novas Gerações. Havia uma reunião marcada entre ele e a relatora especial, a filipina Victoria Tauli-Corpuz, sobre direitos dos povos indígenas. Não obstante, seu pedido de passaporte, apresentado no dia 30 de julho de 2018, ainda não foi tramitado, e seu direito constitucional de ir e vir não foi respeitado. Esta situação foi denunciada na intervenção do CETIM em 19 de setembro, durante o debate interativo com a relatora especial.
No mesmo dia, pela manhã, o CETIM se pronunciou sobre a inclusão dos povos aborígenes na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, e alertou que “o Estado chileno poderia se retirar do Convênio 169 (da Organização Internacional do Trabalho, OIT), decisão que representaria uma regressão dos direitos dos povos indígenas no Chile e na América Latina”.
Durante o 39° período de sessões do Conselho de Direitos Humanos, a relatora especial sobre os direitos dos povos aborígenes, Victoria Tauli-Corpuz, fez a exposição de um estudo temático sobre as agressões contra os ativistas indígenas.
Ela concluiu, em seu informe, que “os projetos de desenvolvimento em grande escala são os principais fatores que impulsam a intensificação dos ataques e a criminalização a respeito dos povos indígenas. É preciso interromper a execução de projetos que não contem com uma autêntica consulta ou a adoção de medidas para obter o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas interessados”.
E continuou recordando que “a constante negativa às demandas legítimas do povo mapuche, por parte das empresas madeireiras e do Estado, têm como consequência a depredação dos espaços territoriais associados ao hábitat necessário à reprodução da cultura mapuche, a exploração indiscriminada dos recursos da terra e da água, além de uma política de criminalização, com processos concretos de perseguição contra organizações e lideranças mapuche, com o claro objetivo de desarticular o movimento”.
A criminalização das demandas legítimas dos povos indígenas, num contexto de luta contra os projetos das sociedades multinacionais, é uma problemática mundial que compromete a responsabilidade dos Estados. O Chile não é uma exceção neste fenômeno preocupante de agressão contra o povo mapuche. A solução passa necessariamente pela busca de caminhos políticos que signifiquem a inclusão de todos os envolvidos no conflito, inclusive os setores injustamente estigmatizados.
O CETIM, o Comitê de Ética contra a Tortura e o coletivo Novas Gerações Chile pediram ao governo chileno que assegurasse a proteção dos dirigentes indígenas, em conformidade com os compromissos internacionais em matéria de direitos humanos. A livre determinação é um princípio geral de grande importância para os povos indígenas, pois afirma seu direito ao livre desenvolvimento econômico, social e cultural.
O direito à livre determinação está consagrado no artigo 1 comum ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e no artigo 3 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A Declaração sobre o Direito e o Dever dos Indivíduos, os Grupos e as Instituições de Promover e Proteger os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos estabelece a legitimidade da defesa dos direitos sobre a terra, além de reivindicar esse “valioso trabalho”.
Uma causa fundamental da atual intensificação das agressões é a falta de respeito pelos direitos coletivos sobre a terra dos povos indígenas e o fato de não oferecer às comunidades indígenas uma propriedade segura da terra, o que, por sua vez, afeta negativamente sua capacidade de defender com eficácia as terras, os territórios e seus recursos contra os danos causados pelos projetos em grande escala. Esta é uma preocupação que tem sido constantemente, planteada tanto pela relatora especial Tauli-Corpuz desde sua chegada ao cargo, em 2014, quanto pela própria instância que ela representa, desde a sua criação, em 2001.
Entretanto, a urgência em enfrentar esta situação está ganhando uma nova dimensão, tendo em vista o rápido avanço de expansão dos projetos em grande escala. A importante contribuição que os povos indígenas podem dar no que diz respeito a garantir uma melhor conservação e adaptação aos níveis que não acelerem a crise climática, e em estratégias de mitigação, reconhecida em informes recentes (A/71/229 e A/HRC/36/46), não pode alcançar seu pleno potencial, caso sejam mantidos os questionamentos aos direitos dos povos indígenas sobre a terra.
Embora alguns países tenham aprovado leis para proteger os direitos coletivos sobre a terra dos povos indígenas, ainda existem problemas para determinar esses direitos na prática.
Os casos de criminalização e violência surgem, na maioria das vezes, quando os dirigentes indígenas e membros de suas comunidades manifestam sua oposição aos projetos de grande envergadura, contra os interesses das indústrias extrativistas, a agroindústria, as infraestruturas, as represas hidroelétricas e o desflorestamento.
Em outros casos, os modos de vida e de subsistência dos povos indígenas são considerados ilegais ou incompatíveis com as políticas de conservação, o que dá lugar à proibição dos meios de vida tradicionais e a detenções, encarceramentos, desocupações forçadas de terras e violações de outros direitos humanos dos povos indígenas. Este tema também foi apresentado no informe à Assembleia Geral (A/71/229).
Um novo motivo de preocupação é a pressa em impulsar certas medidas de adaptação e mitigação relacionadas com as alterações climáticas do planeta, as quais levam ao risco de afetar negativamente os direitos dos povos indígenas, a não ser que contenham salvaguardas aos direitos humanos.
A relatora especial Tauli-Corpuz examinou essa questão em um informe anterior, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos (A/HRC/36/46). Desde que iniciou seu mandato, ela já testemunhou em primeira mão a existência de vários projetos em grande escala, particularmente durante suas visitas oficiais ao Brasil (A/HRC/33/42/Add.1), Guatemala (A/HRC/39/17/Add.3), Honduras (A/HRC/33/42/Add.2), México (A/HRC/39/17/Add.2), Estados Unidos (A/HRC/36/46/Add.1) e à região Lapônia, entre Noruega, Suécia e Finlândia (A/HRC/33/42/Add.3).
Escutei numerosos testemunhos e constantemente recebo informações sobre supostas violações aos direitos humanos, as quais indicam os efeitos devastadores produzidos por alguns projetos em regiões ocupadas pelos povos indígenas, o que dão lugar a repercussões muito negativas em seus sistemas de governo, afetando a coesão social, os meios de subsistência, o meio ambiente como um todo, a saúde e os direitos e à água e à alimentação.
A natureza é amiga do homem, mas não tolera ser tratada grosseiramente. Um pedido que parece exagerado, nestes tempos de “salve-se quem puder” da barbárie capitalista.
(*) Eduardo Camín é jornalista, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU, redator-chefe internacional do Hebdolatino e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
Publicado em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli