Será possível que o Dique Mauá seja parte da Rota da Seda? – Por Garabed Arakelian
Por Garabed Arakelian *
A desapropriação de dois edifícios contíguos ao Dique Mauá, em plena faixa costeira de Montevidéu, abriu um debate que envolveu todo o mundo político e a cidadania.
Nesse processo, vieram à tona temas que transcendem a simples alienação dos prédios, ao mostrar que a iniciativa toda contém elementos patrimoniais, paisagísticos, econômicos, culturais, urbanísticos, técnicos, financeiros, históricos e visões de futuro estratégico comprometidos com o desenvolvimento e a soberania. Também, modestamente, o direito à dignidade de atuar como povo, dono do seu destino.
Tendo em vista os novos elementos de análise, parece que o projeto é algo mais que a construção de um porto marítimo e fluvial, acrescentado de “estacionamentos subterrâneos, shopping center e hotel multiestelar, tudo isso a dois minutos do coração de Montevidéu”, segundo a oferta original do empresário López Mena, da Buquebús (empresa que monopoliza o transporte de balsas entre Montevidéu e Buenos Aires).
Chama a atenção o papel protagonista deste empresário reincidente na apresentação de projetos rejeitados e executor de outros que afetaram gravemente o erário público e o interesse geral do país.
Foi difundida no país a ideia de que este empresário naval negocia com o Banco da República (estatal), com o propósito de eludir o pagamento de 14 milhões de dólares pelo remate dos aviões da falida linha aérea Pluna. López Mena tem no currículo um caso de contrato não cumprido – para construir um porto de iates na cidade de Colônia do Sacramento –, entre outros episódios que não ajudam a melhorar sua imagem.
Abundam os argumentos econômico-financeiros que explicam a postura do investidor privado, que busca meramente o lucro. Porém, no caso específico do Dique Mauá, a partir da desapropriação dos edifícios, López Mena se tornaria proprietário dessas terras, e com elas como respaldo e garantia, poderia gerir e obter os empréstimos necessários para seu investimento imobiliário – só isso se pode fazer? Não há outros usos possíveis e mais de acordo com o interesse público?
Aqueles que querem dar o aval a esta iniciativa de interesse privado, e ao mesmo tempo se desfazer do peso de um voto contra a defesa do patrimônio público, tentam negociar um acordo que conceda o usufruto dos terrenos, confiando que todos os demais fatores afetados serão superados com o passar do tempo. Porém, inesperadamente, o principal obstáculo agora é o empresário privado, que joga sua ficha ao tudo ou nada: “se não há concessão, não há investimento, e a obra não sai”, afirma de modo taxativo.
Este novo cenário, com uma nova postura do candidato a concessionário, exige uma análise do sujeito e de sua situação como litigante com relação ao Estado uruguaio, uma vez que López Mena também possui porto, desembarcadouro e aduana em Buenos Aires, e lá ele não tenta adquirir a propriedade desses terrenos.
É inegável que o desenvolvimento da atividade portuária em Montevidéu transforma a empresa Buquebús numa presença incompatível e incômoda para essa atividade. E por isso é válido pensar que podem existir outros fatores, de futuro mais ou menos imediato, que incidam em todos os movimentos que estão sendo executando neste jogo.
As verdadeiras razões desta proposta e suas variações talvez sejam outras, e por enquanto não aparecem planteadas. Poderíamos pensar em ações futuras, em cenários que se alteram e transformam esse possível porto “marítimo-fluvial”, que tão improvisadamente se quer construir, em algo mais importante e decisivo.
Talvez seria bom retroagir às atividades da Comissão Administradora do Rio da Prata, na qual, é justo dizer, a representação uruguaia mantém uma tenaz resistência com relação aos interesses argentinos. Uma pugna que os uruguaios não desconhecemos, que está presente ao longo de toda a nossa história e na que, devido à nossa pequenez territorial, sempre terminamos sendo atropelados pelos interesses argentinos.
Mas agora, esse organismo binacional autorizou a dragagem de um trecho do Rio da Prata que abre o Porto de Montevidéu ao trânsito de novas e maiores embarcações de grande porte, o que significa a recuperação do seu rol histórico de importante porto centralizador de toda a logística – não só fluvial como também ferroviário e rodoviário – da Cuenca do Prata.
Casualmente, ou coincidentemente, no mês de agosto, o chanceler uruguaio assinou um memorando de entendimento entre Uruguai e a República Popular da China, pelo qual o Rio da Prata foi incorporado à Rota da Seda, um formidável projeto logístico estratégico com o qual a república asiática tenta projetar sua influência econômica e política até estes confins.
Os estrategistas argentinos, os representantes dos interesses ligados ao domínio das águas do Rio da Prata, não são indiferentes isso: estão alarmados e em pé de guerra contra seu próprio presidente, que assinou a autorização da dragagem em questão.
Este anúncio consolida e conclui uma precisa orientação desenhada pelas multinacionais do transporte e da comercialização mundial de grãos, “cujo ponto de ancoragem é a cessão por parte da Argentina da soberania do Rio Paraná e do Rio da Prata, decidida pelo presidente Macri, ao aceitar o livro fechado do projeto de canalização pelo qual se estipula Montevidéu e o Uruguai como pontos de entrada e saída da Cuenca do Prata”, descreve Horacio Tettamanti , engenheiro naval argentino e ex-subsecretário de Portos e Vias Navegáveis.
Tettamanti conclui, sem deambulações, que “deveria ser a Argentina o país a assinar esse acordo com a China sobre a Rota da Seda. Por sua história, por seu território, por sua identidade e, fundamentalmente, por direito próprio. Sem dúvida, essa claudicação figurará nos livros de história como um dos erros mais graves já cometidos pelo atual governo argentino”.
É evidente que toda a maldade das multinacionais, tão evidente se Montevidéu for o porto beneficiado, desapareceria e se transformariam em altamente benéficas se fosse Buenos Aires quem obtivesse essa consideração, como se vê ao utilizar-se o argumento do “direito próprio”. Obviamente, o engenheiro argentino é um sujeito capaz, do ponto de vista técnico, e também é, honestamente, um oligarca portuário, do ponto de vista histórico e político. Calculou os benefícios que a Argentina supostamente perde, e assume “que não estamos falando somente da perda dos 5 bilhões de dólares anuais em valor agregado logístico, no conceito de atividades portuárias e da indústria naval. O dano aos interesses nacionais é imenso. O maior de todos é aquele que não figura nos balanços e na macroeconomia: o devastador dano ao poder de negociação nas instâncias estatais e privadas nacionais na pugna pela distribuição da renda da enorme riqueza que a Cuenca do Prata canaliza e representa”.
A mesma fonte diz que a chancelaria de Mauricio Macri, depois de ter eliminado a Resolução 1108/13, que assegurava nossa autonomia portuária, acaba de clausurar nossa saída comercial ao mar, ao Oceano Atlântico. Se trata do trânsito soberano da gigantesca riqueza que a Cuenca do Prata oferece, e que significa 50% da proteína vegetal que alimenta o mundo.
“Sim, o governo argentino acaba de capitular, na Comissão Administradora do Rio da Prata, após uma larga controvérsia, autorizando a dragagem de um trecho crucial do Porto de Montevidéu, o que significa colocar uma barreira à saída da produção argentina e entregar o negócio aos monopólios internacionais que farão o que quiserem com o tráfico portuário do lado oriental, algo que não puderam fazer do lardo argentino apesar dos esforços nesse sentido nos últimos 15 anos”, comenta o Tettamanti.
As considerações políticas do argentino são mais importantes que seus cálculos econômicos, que deveriam passar a considerações sobre as autoridades uruguaias. Por isso é válido supor que o empresário argentino López Mena, na questão do Dique Mauá, pretende ter não só a vista de um rio tão largo quanto um mar, como também possuir um acesso ao novo trecho dragado, que passará em frente aos seus narizes – e, consequentemente, a tudo que passe pelo canal. Quem poderia proibir que seus serviços e instalações sejam paradeiro quase obrigatório aos que queiram avançar ao oeste?
Enfim, se antes já havia razões para não desapropriar, agora também há razões para não conceder, e sobretudo, para que seja mais cuidadosa a resolução desse tema, porque as feras feridas em seus interesses costumam contra-atacar inesperadamente. O que obriga o Estado a ter clareza sobre qual deve ser o primeiro passo: a resposta tem que ser NÃO ao Projeto Mauá, ao menos enquanto não há maiores estudos e maior responsabilidade.
* Garabed Arakelian é técnico mecânico, jornalista e docente uruguaio, militante social, sindical e político, ativista da causa armênia e dos direitos humanos, dirigente do Partido Socialista do Uruguai e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
*Publicado em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli
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