Qual democracia será mostrada no Museu da Democracia? – Por Juan Pablo Cárdenas

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Por Juan Pablo Cárdenas *

Com uma audácia própria de sua personalidade, o presidente Sebastián Piñera manifestou sua intenção de organizar um Museu da Democracia. Com isso, pensamos que nem ele mesmo está convencido de que existe no Chile um regime de tal condição, e que uma iniciativa como esta poderia ajudar na promoção da democracia e da soberania popular, mais que acreditar na sua presença através da nossa história.

Embora pareça óbvio, para que este regime exista não basta o sufrágio da cidadania. Por isso, muitos cientistas sociais estimam que deve existir também uma constituição que garanta o exercício de deveres e direitos do povo, um sistema econômico e social minimamente igualitário, assim como uma institucionalidade que reconheça a independência dos poderes do Estado. Do contrário, teremos o surgimento de fenômenos como a corrupção e o fortalecimento do narcotráfico empoderados nas instituições do Estado e da sociedade, considerados como pragas que ameaçam severamente a credibilidade e estabilidade de muitos países vistos como democráticos.

A história do Chile mostra várias oportunidades nas quais os militares e outros poderes fáticos derrubaram governos e suspenderam processos políticos e sociais que tentaram promover a igualdade entre os chilenos e a livre determinação dos cidadãos. O pior episódio, sem dúvida, foi o golpe militar de 1973, que levou ao magnicídio do presidente Salvador Allende (1970-1973), à morte de milhares de chilenos e à imposição de um período de 17 anos de violações sistemáticas dos Direitos Humanos, com o Poder Legislativo desmantelado e a bota militar pisando forte nos tribunais de Justiça. Sem contar a suspensão dos direitos de associação, sindicalização e outros tão importantes como a própria liberdade de expressão.

Quase duas décadas de tirania, que foram seguidas por um período (ainda vigente) de 30 anos de uma pós-ditadura ainda regida pela Constituição imposta pelo ditador Augusto Pinochet, e que defende os interesses dos grandes grupos empresariais. Com um Congresso Nacional interditado pela patética expressão de seus integrantes, eleitos pela abstenção – como o voto não é obrigatório, mais de 50% dos inscritos no padrão eleitoral decidiu não participar dos últimos pleitos.

Tampouco se pode esquecer da impunidade a respeito de todos os episódios de repressão presentes ao longo de toda a nossa história, desde os anos da nossa Independência até hoje, onde uma instituição do Estado encarregada de proteger as crianças vulneráveis (o Sernam, Serviço de Proteção aos Menores) se mostra culpada da morte e tortura de milhares delas que estão sob seu cuidado. Também não se pode omitir os casos recentes, como o de uma Corte Suprema que outorgou a prisão domiciliar a vários dos mais tenebrosos integrantes dos serviços secretos de repressão da ditadura, que estavam presos na penitenciária de luxo de Punta Peuco, por seus crimes de lesa humanidade, embora seus crimes, no mundo civilizado, sejam considerados imprescritíveis, de acordo com o direito internacional.

Não há no Chile um político de ultradireita que negue as profundas inequidades em matéria econômica, as que consolidam o país como um dos que tem a maior brecha entre ricos e pobres, francamente escandalosa. Essa brecha, segundo um estudo recente do instituto Casen, tem aumentado muito nos últimos dois anos, depois de um governo como o da presidenta Bachelet, de militância socialista e administração autoqualificada de centro esquerda. Uma chefa de Estado que, como o próprio Piñera, “repetiu o prato” e conseguiu um segundo mandato não consecutivo, voltando ao Palácio de La Moneda. Embora, no caso dela, a saída do governo seja premiada, novamente, com um alto cargo nas Nações Unidas, com o respaldo dos Estados Unidos e outras potências que reconhecem a fidelidade da nossa ex-governante com os valores do livre mercado e a ideologia neoliberal – em 2010, foi nomeada como a primeira secretária-geral da agência ONU Mulheres, e agora é indicada para assumir a Comissão de Direitos Humanos, em Genebra. Curiosamente, seu trabalho diplomático será realizado nos escritórios sediados em uma das principais metrópoles do capitalismo mundial.

Mas a iniciativa de Piñera de tentar registrar um novo museu à nossa trajetória democrática é realmente um grande desafio, em um país acostumado às intervenções militares e que jamais teve uma constituição definida em um processo constituinte de participação da cidadania e aprovada pelo povo, como nossos historiadores já se cansaram de comprovar. Ainda mais considerando os nossos últimos governos, tão simpáticos à Casa Branca, inclusive esta comandada por Donald Trump, cujo secretário de Defesa é conhecido pelo apelido “cachorro raivoso”, e ainda assim é recebido com honras pelos países mais genuflexos de América Latina – entre os quais nos encontramos.

Também devemos lembra que não há outra nação no mundo onde as riquezas básicas (commodities, como se chamam agora) estejam quase todas nas mãos de empresas estrangeiras e multinacionais, que se dão ao trabalho, junto com alguns empresários chilenos, de financiar as campanhas eleitorais e subornar aqueles políticos e partidos que garantem a manutenção dos seus privilégios tributários e outros benefícios. Para que nunca mais tenham que enfrentar ideias tão “extremas” como a de nacionalizar o cobre, ou entregar terra aos que trabalham nela, ou promover uma integração regional, ou dar maior verba publicitária aos poucos meios informativos que se atrevem a contestar o sistema – para que a fofoca e o jornalismo marrom sejam o pão de cada dia dos noticiários de televisão e da imprensa em geral, o placebo da nossa opinião pública.

La Moneda e as câmaras legislativas se renderam à Constituição e às leis herdadas da contrarrevolução pinochetista, adotadas como próprias pela atual classe política. Numa democracia que sequer poderia ser considerada de papel, assim como tantos empreendimentos fraudulentos, ou a existência de referentes políticos sem ideologia nem militância, e que, em seus supostos exercícios democráticos internos, são em regra desvirtuados pela coação e outras formas de jogo sujo para se chegar ao poder – como recentemente ocorreu com o partido chamado Força Pública, uma nova expressão política que propôs ser uma “correção” a essas atividades, mas que também se viu envolvida em casos de financiamento ilegal de campanhas e outras atividades partidárias.

O acervo democrático do Chile parece ser insuficiente para a construção de um museu para honrar essa condição republicana. A não ser que a intenção seja somente a de construir mais um obsoleto edifício na capital, como o parlamento edificado pelo ditador em Valparaíso, ou o próprio palácio presidencial remodelado após o bombardeio de 1973, ou os tribunais e outros imóveis completamente vazios de conteúdo democrático. Construções grotescas, da mesma categoria que os shopping centers e os templos que se levantam por todo o país, para o desfrute de quem tem dinheiro e poder. E que são, em efeito, os melhores museus da nossa realidade atual.

Porque o fustigado Museu da Memória, devemos reconhecer, ao menos é uma expressão trágica e fidedigna do que efetivamente aconteceu em nosso país, embora seja atacado por muitos que hoje buscam sacudir o passado e “contextualizar” o acontecido, tentando imprimir ares de democracia aos seus relatos.

* Juan Pablo Cárdenas é diretor de Rádio UChile e colaborador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

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