A migração não é um delito e a xenofobia se combate com solidariedade – Por Silvia Arana
Por Silvia Arana*
A migração é uma luta cotidiana para os que são forçados e deixar seus lugares de origem em busca da subsistência. O mundo atual registra movimentos massivos de homens, mulheres e crianças que atravessam rios e mares, estradas e desertos, em muitos casos levando somente um pedaço de roupa, cobertos de pó ou empapados de chuva, passando frio ou sofrendo com um calor sufocante, tentando chegar a algum lugar… e se encontrando com muros, barreiras, guardiães de fronteira, que fecham os portões. Uma imagem bastante comum na Europa e nos Estados Unidos, supostos paraísos da democracia, mas onde a democracia só vale para os que possuem a documentação requerida.
Na América Latina, anos atrás, foram dados passos importantes para facilitar o fluxo de pessoas através das fronteiras. Como parte dessa dinâmica a favor da integração dos povos, o Equador sancionou a Lei Orgânica de Mobilidade Humana, em janeiro de 2017. A norma estabelece, em seu artigo segundo, os princípios fundamentais de:
Cidadania universal: o reconhecimento do direito do ser humano de se mover livremente por todo o planeta, o que implica na portabilidade dos seus direitos humanos independentemente de sua condição migratória, nacionalidade e lugar de origem, o que levará ao progressivo fim da condição de estrangeiro;
Livre mobilidade humana: o reconhecimento jurídico e político do exercício da cidadania universal, implica no amparo do Estado à mobilidade de qualquer pessoa, família ou grupo humano, com a intenção de circular e permanecer no lugar de destino de forma temporária ou definitiva.
Entre as obrigações das pessoas sul-americanas, o artigo número 84 estabelece as regras para a entrada e saída do território nacional: os cidadãos sul-americanos podem entrar ingressar, circular e sair do território equatoriano apresentando somente seu documento de identificação nacional, por pontos de controle migratório oficiais. Os documentos de identificação emitidos por seus respectivos países constituem documentos de viagem.
Devido à crise político-econômica atravessada pela Venezuela – país que está na mira do governo estadunidense, apoiado pelo governo colombiano e outros – nos últimos meses, aumentou também o fluxo de migrantes venezuelanos ao Equador. Em uma situação catalogada como “emergência migratória”, em 18 de agosto de 2018, o ministro do Interior, Mauro Toscanini, anunciou que os cidadãos venezuelanos que não tenham passaporte não poderão entrar ao Equador. O novo requisito estipulado no decreto viola o artigo 84 da Lei de Mobilidade Humana, segundo a qual qualquer documento de identidade é válido.
Em entrevista ao diário El Comercio, o ministro do Interior afirmou que há “muita desordem” e “falta de controle na fronteira”, que em muitos casos os documentos de identidade dos venezuelanos eram “ilegíveis”, e que o Equador havia sido “generoso demais” com os cerca de 250 mil venezuelanos que residem no país. Também afirmou que “não se pode permitir a migração indiscriminada”.
Tanto o decreto que impede a entrada dos cidadãos venezuelanos com cédula de identidade quanto os conceptos vertidos pelo ministro do Interior estão em aberta contradição com os princípios contidos na Lei de Mobilidade Humana. Segundo a Defensoria do Povo e a Defensoria Pública do Equador, o decreto é ilegal e deve ser suspenso de forma imediata.
Na encruzilhada: política humanitária de fronteiras abertas ou xenofobia?
Nas redes sociais de todo o mundo, pululam os comentários xenófobos, racistas e machistas; e o Equador é uma exceção. Apesar de ser um país de migrantes – com mais de 10% de sua população no exterior – a discriminação contra estrangeiros tem sido denunciada por organismos internacionais como o Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) já em agosto de 2010. Naquele então, as vítimas de discriminação eram, na sai maioria, cidadãos colombianos que fugiam da violência em seu país. O representante adjunto do ACNUR no Equador, Luis Varese, expressou que a xenofobia não constitui uma política de Estado, mas sim responde a uma ação orquestrada por diversos interesses: “a oposição é contra uma política abertamente humanitária de refúgio”.
Entretanto, parece que a partir de 18 de agosto a xenofobia passou a ser uma política de Estado. Por que razão o governo do Equador emitiu um decreto que discrimina a uma nacionalidade sul-americana? Será que os assessores legais não perceberam que o decreto viola a Lei de Mobilidade Humana? Se não retroceder, o governo de Lenín Moreno navegará por águas obscuras. Por trás do apego à lei no qual tenta se projetar em alguns temas, como a corrupção, está surgindo um viés oportunista, que tenta se aproximar dos setores xenófobos. Com a instabilidade econômica e política sobre sua cabeça, e a fratura do movimento Aliança País (que o sustentava no Legislativo) criando uma disputa aberta entre correístas e morenistas, além da renúncia recente de vários ministros e dos assassinatos na fronteira com a Colômbia, dá a impressão de que o governo busca desesperadamente se aliar com qualquer setor, e a qualquer custo.
Aliás, reconhecendo a verdadeira razão por trás do decreto que restringe o direito migratório dos venezuelanos, o ministro de Interior finalizou a entrevista com o jornal El Comercio dizendo com surpreendente ingenuidade: “quando saio a caminhas pelo Centro (de Quito) posso encontrar casos de xenofobia, o que é condenável sob qualquer ponto de vista, e então me dizem `mas senhor ministro, o venezuelano está roubando o meu trabalho´. Então, eu vejo as redes sociais, as reações, os diários, as pessoas que ligam às emissoras de rádio… Há uma porcentagem altíssima, talvez 90 ou 95%, que concorda com essa medida”.
Em vez de continuar com as campanhas de educação para reverter a xenofobia e outras formas de discriminação, o governo as validará? Se essa é a circunstância atual, será tarefa dos movimentos sociais – indígenas, feministas, ecologistas, trabalhadores – retomar os valores solidários e exigir que se apliquem as leis progressistas que existem no país.
No livro Um sétimo homem, o escritor britânico John Berger afirmava que “a migração a uma escala sem precedentes é uma característica histórica da época em que vivemos”. Embora o livro de Berger – cuja edição original traz fotografía de Jean Mohr – se centre nas experiências dos trabalhadores migrantes na Europa, também pode ser aplicado hoje no contexto dessa América Latina em crise de integração, ou em qualquer outra parte do mundo. E não só porque é uma brilhante análise socioeconômica das causas da migração e do rol do trabalhador migrante no capitalismo e no neocolonialismo, como também porque é um chamado à solidariedade com os migrantes, desprezados pelas sociedades onde vivem e trabalham. Um sétimo homem traz o formato e o afeto de um álbum de famílias migrantes, e está dedicado “a vocês, os que foram e que hoje mesmo são obrigados a deixar suas famílias, com a esperança de ganhar um salário que lhes permita sobreviver”.
Berger menciona algumas das palavras ofensivas que usam contra os migrantes na Europa: “ciganos”, “gente que anda em camelo”, “comedores de serpentes”, etc… e os mantras que se repetem para alimentar o ódio: “roubam os nossos trabalhos, ficam com as nossas rendas”. Soa como algo familiar?
(*) Silvia Arana é jornalista ligada a meios alternativos, como Rebelión.org, que é distribuído pelo Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)