Lula: a vigência do contrato social – Por Eduardo Camín
Por Eduardo Camín*
“Na busca sobre em que consiste o bem mais apreciado de todos, que deve ser objeto de toda legislação, se encontrará que tudo se reduz a duas questões principais: a liberdade e a igualdade, sem a qual a liberdade não pode existir.
Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até aos próprios deveres.
A verdadeira igualdade não reside no fato de que a riqueza seja absolutamente a mesma para todos, e sim que nenhum cidadão seja tão rico como para poder comprar o outro e que não seja tão pobre como para ver-se forçado a se vender. Esta igualdade, se diz, não pode existir na prática. Mas se o abuso é inevitável, isso quer dizer devemos renunciar à possibilidade a regulá-lo? Como a força coisas tende precisamente a destruir a igualdade, há de se fazer com que a força da legislação tenda a mantê-la sempre”.
Jean-Jacques Rousseau – Do Contrato Social (1762)
Quando chegava a tarde de uma incipiente primavera em Genebra, a poucas ruas do local onde nasceu Rousseau, realizou-se um ato sobre a injustificada prisão de um líder carismático da nossa América, Luiz Inácio Lula da Silva. Era impossível, então, não refletir, na intimidade da minha solidão que aquela tarde, em um breve extrato do Contrato Social que se referia à liberdade e à igualdade.
Apenas alguns quilômetros mais adiante, acontecia a 107ª Conferência Internacional do Trabalho, um evento anual da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Mais de 4 mil delegados de governos, empregadores e trabalhadores dos 187 Estados membros da entidade, examinam algumas das questões mais urgente que o mundo do trabalho enfrenta. Entre elas se encontra uma que chamou a nossa atenção: Fome Zero, justamente um dos desafios da agenda de desenvolvimento sustentável para 2030.
Não posso deixar de pensar nesta ironia perversa: o responsável pelo maior sucesso internacional na luta contra a fome e a pobreza está preso. Ironia sinistra, pois essa pessoa que está na cadeira é o articulador de uma política de distribuição de riqueza em seu país, que conseguiu tirar mais de 36 milhões de pessoas da extrema pobreza em pouco mais de uma década, além de reduzir a mortalidade infantil em 45%, diminuir o número de pessoas subalimentadas em 82% e fazer o Brasil – o maior país da América Latina, e que tem a maior brecha entre ricos e pobres de todo o mundo – desaparecer do mapa da fome que a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) elabora anualmente.
A acusação formal é a de receber indevidamente, como propina, um apartamento que não é e nunca foi seu. O verdadeiro delito é o de ser, neste momento, o líder mais amado em um país em profunda crise, e meio a uma corrida eleitoral presidencial.
Quando uma nação perde o passo histórico, se produz sua íntima decadência. Algo mais grave que as derrotas militares ou as crises de governo. Uma sociedade órfã de suas legendas também se vê de costas à missão das classes, de se sublevar à ideia de se subordinar aos desprestigiados donos do poder econômico, hoje representado de forma absoluta por Michel Temer, ainda que este não consiga, por si mesmo, ser reconhecido como categoria reitora. Daí a manutenção de processos sem base jurídica certa, que servem, entre outras coisas, para ocultar uma hegemonia que se mostra socialmente repugnante.
Ainda mais onde – como acontece ainda em muitos lugares do planeta – os sistemas de justiça perpetuam algumas claras heranças inquisitiva. Juízos com cartas marcadas, envolvidos pelo secretismo e com regras opacas têm sido e são as características sobressalentes desses sistemas. Se buscamos histórias semelhantes certamente encontraremos leis que deveriam ser pactos de homens livres, mas que em geral não são mais que o instrumento das paixões de alguns poucos, ou surgidas de uma necessidade fortuita ou passageira, de espúrios interesses.
As reflexões precedentes me dão o direito de afirmar que a única e verdadeira motivação dos delitos de Lula é maior que o dano que se comete contra a nação. Não há dúvidas de que Lula continua sendo um líder respeitado e reconhecido por aquilo que ele gerou com seu acionar político. Genebra foi sua testemunha.
(*) Eduardo Camín é jornalista, ex-diretor do semanário Siete Sobre Siete, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU, redator-chefe internacional do Hebdolatino e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE) – www.estrategia.la