Os ‘pobres de direita’ e o resultado eleitoral do Chile
Os ‘pobres de direita’ e o resultado eleitoral do Chile
Dizer que a derrota da Nova Maioria – a coalizão de centro-esquerda de Michelle Bachelet – nas últimas eleições presidenciais chilenas se deve aos chamados “pobres de direita” é uma conclusão simplista. Simplista e covarde, porque se esconde numa definição que é ao mesmo tempo classista e falsa, e que abusa da linguagem para esconder uma realidade dolorosa, o que explica muito mais que a falsa teoria.
Seria interessante tentar descobrir o verdadeiro legado de uma coalizão que, apesar do parêntesis do primeiro governo de Sebastián Piñera, foi a que esteve no poder durante quase todos estes 30 anos de período pós-ditadura, tempo no qual se dispôs a administrar o legado de Pinochet, não atuando para realizar uma verdadeira transição democrática.
A verdade é que esse legado intacto é o verdadeiro triunfo da direita.
De outra forma não se entende que a mulher símbolo deste quarto de século no país, Michelle Bachelet, condutora de dois dos últimos governos, termine novamente deixando de fazer seu sucessor e entregando o poder à direita.
Entretanto, não se escuta nem uma mísera autocrítica que tente explicar esse fracasso, esse retrocesso que possivelmente nos levará a um patamar muito mais atrás do que já estávamos em termos de direitos, e sobretudo, com relação a uma perspectiva de vida melhor.
Tampouco vemos a esse setor pedindo perdão ao povo que, como mostra a nossa história, sempre é o que dá a cara para bater diante da pré-disposição da direita de combater a pobreza matando pobres.
É mais fácil culpar esse mesmo povo, agora chamado convenientemente de “pobre de direita”. E não são poucos os que assumem essa definição como certa.
O caminho mais direto pelo qual a direita pode voltar ao poder foi pavimentado pela própria centro-esquerda. Jamais a direita econômica ganhou tanto dinheiro como durante os seus governos. Jamais foram tão poderosos. Nem mesmo durante a ditadura de Pinochet (1973-1990). Este Chile foi armado em um quarto de século à imagem e semelhança da sua elite e dos seus interesses.
Para alcançar esse objetivo, os governos se esmeraram em aperfeiçoar o legado pinochetista, a ponto de transformar seus preceitos em sentido comum: não existem direitos sociais, somente serviços pelos quais todos devemos pagar.
A educação foi o ponto centrar desse ataque. Desde sempre, os promotores do modelo sabiam a escola não muda a realidade, senão que a reproduz. E sabiam que era aí onde deviam colocar seu maior esforço. Também entendiam que a economia modela costumes até fazê-los parte da cultura e que seu maior efeito não está no bolso, e sim na cabeça das pessoas.
Assim, as pessoas se tornam vítimas de uma educação que perdeu sua essência crítica e comovedora, que deveria ser responsabilidade de toda a sociedade como um valor democrático, mas que foi transformada em instrumento mercantil, com crianças sendo formadas como consumidores, mais que como cidadãos.
Proprietários e não proletários. Recordamos?
Se modelou então um habitante cuja memória da pobreza dista de sua atual realidade. A pobreza histórica era a carência de coisas materiais, da impossibilidade de aceder a bens próprios dos ricos. Ser pobre era viver a uma distância enorme das vitrines e seus objetos de luxo.
O sistema económico popularizou o acesso aos bens e serviços que antes eram privativos dos setores mais ricos, e o produto econômico dessa revolução foi a emergência de uma classe média que busca a ostentação: ser como eles, viver como eles, ou o mais parecido possível.
Os bairros pobres passaram a ser vilas, ou condomínios de edifícios com apartamentos minúsculos. O acesso aos shoppings foi facilitado pela via de instalar grandes centros comerciais acessíveis via transporte público.
Tão perto e tão fácil quanto o caixa eletrônico que entrega empréstimos em dinheiro. Tão útil e eficaz quanto um pedido de crédito de consumo. Tão normal e razoável quanto um crédito a taxas abusivas.
Agora, tente explicar a este sujeito que está endividado para a vida inteira, que paga uma fortuna por uma escola para os filhos, que vive numa moradia diminuta, que vive com salários baixíssimos e trabalha em condições subumanas à espera de uma aposentadoria miserável, que tudo isso o torna uma pessoa pobre, um assalariado vítima de um sistema que o explora. Você acha que ele vai acreditar?
Essa situação é o resultado de quase 30 anos de construção desta cultura na que vivemos. Neste lapso, os partidos de esquerda ou mudaram suas anteriores convicções ou se decidiram pelo caminho rápido para se instalar à superestrutura do poder. Nesse andar, se debilitaram as organizações sociais, colocaram obstáculos para a organização dos trabalhadores, eliminaram quase toda a imprensa crítica e a cultura foi mais do que nunca, um objeto da elite. Um número que mostra bem isso é o fato de que o Chile possui menos de 250 livrarias em todo o seu território, e mais de 1,5 mil farmácias.
A centro-esquerda governou com e para a direita desde o primeiro dia. Tratou mal o povo. Se lambuzou no mesmo grosso lodo da corrupção. Muitos se fizeram ricos e poderosos, e aliados dos grandes empresários.
Os reajustes salariais aos trabalhadores nas últimas décadas foram miseráveis. A centro-esquerda se negou conscientemente a combater questões tão importantes como o sistema previdenciário da ditadura, que condena os idosos a um futuro pobre e doente. As reformas educacionais foram basicamente o aperfeiçoamento do legado pinochetista. A Constituição deixada pelo tirano foi tratada com desdém, e se mantém vigente. Evitaram todos os incentivos aos professores. Relegaram os mais pobres a guetos urbanos às margens das cidades, sujeitos a todas as pragas. Arrasaram as cristalinas águas austrais com inúmeros cativeiros de salmões. Encheram o país de energia suja originada por combustão de carvão. Responderam aos que reclamaram por tudo isso com uma repressão brutal. Liquidaram a escola pública. Transformaram a saúde em mercadoria.
Depois disso tudo, esperam exigir que as pessoas votem por eles e reconheçam seus supostos avanços. Quando isso não acontece, são as pessoas as castigadas com rótulos – e o que disso tudo é serem responsabilizado pelos guardiães da cultura que os modela, que é a verdadeira culpada pelo seu fracasso
Então, a ideia de um certo pobre de direita passa a ser a imagem dos agentes malévolos que, sem consciência, traidores, sequestrados pelo afã de consumir, endividados e viciados pelos smartphones, estão dando as costas e castigando a centro-esquerda, e abrindo caminho à direita, é uma forma de tergiversar o diagnóstico.
Falar em “pobre de direita” é uma forma de ceder ao classismo, tentando encobrir as responsabilidades dos que dirigiram o país nas últimas décadas. Esses que, sendo da centro-esquerda, votaram na direita, ou que o felicitaram, ou que ofereceram a ele seu apoio – como algumas figuras do Partido Democrata Cristão.
Desses ricos de direita ninguém fala. Mas eles existem, e como atuam!
Ricardo Candia Cares é analista político chileno.