Álvaro García Linera, vicepresidente de Bolivia: «La existencia de gobiernos de izquierda en Brasil ayudó al desarrollo de América Latina en su soberanía»
Patricia Campos Mello
Apesar de dizer que não opinará sobre a possibilidade de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o vice-presidente da Bolívia, Alvaro García Linera, deixa claro que o governo boliviano acompanha com preocupação a crise política brasileira.
«Um governo conservador no Brasil, complacente com atitudes antidemocráticas, seria uma catástrofe para a América Latina», disse García, em entrevista àFolha. «A existência de governos de esquerda no Brasil ajudou o desenvolvimento da América Latina em sua soberania.»
O vice-presidente boliviano, no poder desde 2006, esteve no Brasil a convite do Instituto Lula e se reuniu com o ex-presidente, com Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, e com o sociólogo Emir Sader, seu «pai brasileiro».
Ele indica que a Bolívia irá bloquear qualquer tentativa de integração entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico enquanto o Chile não conceder ao governo boliviano a almejada saída para o mar.
Folha — A América do Sul foi afetada duramente pela redução no preço das commodities, e Brasil e Venezuela terão encolhimento de PIB este ano. Já a Bolívia deve mais uma vez ter crescimento acima de 4%. Qual é o segredo?
Alvaro García Linera
— Foram várias decisões. A primeira foi distribuir riqueza, que também a distribuição da riqueza dinamiza o mercado interno. Demos ênfase em maiores exportações, mas também no crescimento do mercado interno.
E a terceira fonte de crescimento são os fortes investimentos do Estado e também, tomara, privados, nacionais e estrangeiros. Nós multiplicamos por cinco as exportações nos últimos 10 anos, aproveitamos a expansão dos mercados externos e os altos preços.
Mas não confiamos só nisso. Simultaneamente, fizemos um esforço para dinamizar o mercado interno: 20% da população passou à classe média, o salário mínimo subiu 500% em nove anos, fizemos uma política prudente de reservas internacionais e fortes investimentos públicos em infraestrutura, educação, estradas.
E políticas públicas para incentivar os investimentos privados, como a obrigatoriedade dos bancos de que 65% dos depósitos precisam ser usados para crédito produtivo ou habitacional.
A crise econômica também está nos afetando, não somos imunes, mas de uma maneira muito mais atenuada. Sem crise econômica estaríamos crescendo 7% e agora vamos crescer 4,8%, 4,7% este ano.
Somos um governo de esquerda, revolucionário, mas soubemos usar as variáveis macro e microeconômicas de uma maneira planejada, para estimular a produção.
Com os preços de commodities baixos, é sustentável manter as políticas de valorização de salário mínimo e programas sociais na Bolívia?
Os programas sociais têm fontes seguras de financiamento e não vamos mexer nisso. Nós financiamos esses programas com a rentabilidade das empresas estatais. As estatais precisam obrigatoriamente dar lucro.
É certo dizer que a Bolívia tem um governo de esquerda que adota um programa econômico ortodoxo?
Não, porque nossa política é muito heterodoxa. A política ortodoxa primeiro produz e depois distribui. Nós produzimos e distribuímos para produzir mais.
A ortodoxia diz que, em tempo de crise, é preciso se retrair. Nós, em tempos de crise, estamos aplicando medidas anticíclicas, como a expansão dos gastos públicos em infraestrutura.
Nos últimos 10 anos multiplicamos por dez os investimentos públicos. Estamos usando reservas internacionais para manter os investimentos em produção e infraestrutura.
No Brasil, é o contrário, estamos no meio de uma crise econômica e estamos fazendo ajustes, cortes de gastos, em vez de política anticíclica, talvez por falta de espaço fiscal para isso. As políticas de austeridade, como as que são adotadas no Brasil e na Europa, funcionam?
Eu não conheço bem o que está acontecendo no Brasil, não vou dar opinião. No caso da Europa, estive recentemente na Grécia e Espanha, as políticas de austeridade lá não se limitam a cortes nos benefícios sociais, mas também privatização de bens públicos.
Isso a Bolívia já conhece e não tem um final feliz. Nos anos 80 na Bolívia se cortaram benefícios sociais, mas o pior, o Estado privatizou os bens públicos e ao fim da década, tínhamos uma economia em bancarrota.
Na Europa, a receita é conhecida, a América Latina a usou, e não funcionou. Na América Latina estão congelando ou restringindo benefícios sociais, mas não estão entrando em políticas de privatização.
No caso do México, é como uma novela, o jovem simpático da novela morre no fim e a menina pobre que tinha de ficar rica, acaba mais pobre. O México e o sul da Europa vão ter esse destino triste.
Não é isso que está acontecendo no Brasil?
No Brasil não há processos de privatização.
Sim, porque nós já passamos pelas privatizações….
Ontem o senhor disse, durante apresentação aqui em São Paulo, que «a América Latina e o processo progressista dependem do que venha a acontecer com o Brasil». O que o senhor queria dizer?
O Brasil é a maior economia e a maior população da América Latina. A existência de governos progressistas e de esquerda no Brasil na última década influenciou muito, criou um espaço fértil para o desenvolvimento de governos revolucionários e progressistas no resto do continente.
Em momentos em que países da região eram alvo de ataques internos antidemocráticos ou ataques externos antidemocráticos, o Brasil sempre foi uma voz de respeito às instituições e às decisões de cada país.
Pela primeira vez em cem anos os povos enfrentam suas dificuldades, mas decidem eles mesmos o seu destino. E o Brasil teve papel muito importante nisso, respeitando a institucionalidade e o regime democrático.
Seria terrível para o continente uma postura diferente do Brasil. Uma atitude complacente com atividades antidemocráticas internas ou tolerante de intervencionismos do norte, isso seria terrível para o continente.
O Brasil discute hoje a possibilidade de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. De que forma um impeachment no Brasil mudaria as relações com a Bolívia?
Não posso prever e nem opinar. Simplesmente estamos atentos e observando. Posso dizer minha opinião: a existência de governos de esquerda no Brasil ajudou o desenvolvimento da América Latina em sua soberania, e em particular na Bolívia.
Como poderia me esquecer da visita de Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência brasileira para Assuntos Internacionais] em 2008.
Havia um golpe de Estado na Bolívia, uma tentativa de intervenção política e até militar norte-americana, e a voz serena de Marco Aurélio e o apoio do ex-presidente Lula dizendo —deixem que os bolivianos resolvam seus problemas.
Como não deixar de dizer: «Obrigado, Brasil»? Isso permitiu que nós resolvêssemos, democraticamente, entre nós, bolivianos, conflitos que tendiam a desencadear violência e até uma guerra civil. Isso se aplica para o resto dos países da região. O governo de esquerda do Brasil nos ajudou muitíssimo.
Então, por exemplo, se tivermos uma mudança e tivermos um governo mais conservador no Brasil, que tipo de consequências teríamos na América Latina?
Um governo conservador complacente com atitudes antidemocráticas e intervencionistas seria uma catástrofe para o continente. Esperamos que isso nunca ocorra no Brasil.
Nos últimos dez anos, com seus problemas, com suas dificuldades, a América Latina está resolvendo seu próprio destino. Mas é claro que não posso me intrometer na política interna do Brasil.
O presidente Evo Morales disse em agosto que era possível uma reaproximação com os EUA [o país expulsou em 2008 o embaixador americano, acusando-o de estar envolvido em conspiração para derrubar Evo]…
Nós nunca quisemos brigar com os EUA. No início do governo tínhamos contatos regulares com o embaixador dos EUA. Somos um povo que quer ter relações com todos os países do mundo.
Mas, durante reuniões, uma das primeiras coisas que o embaixador americano nos sugeria é que rompêssemos relações com Irã e Cuba. E agora eles têm relações com Cuba e Irã.
As coisas pioraram quando o embaixador americano interveio nos assuntos políticos internos, em 2008, financiou a oposição, aglutinou conspiradores, e resolvemos expulsá-lo. Antes disso, nossa relação com os EUA era fraterna, amistosa.
Mas se os EUA não se intrometerem em nossos assuntos internos, teremos os braços abertos. E em todo esse tempo, apesar do distanciamento político, nosso comércio melhorou muitíssimo —hoje vendemos três vezes mais aos EUA comparado a sete anos atrás.
O senador boliviano Roger Pinto recebeu recentemente do Conare [Comitê Nacional para os Refugiados] o status de refugiado. Como o senhor vê isso?
Nós lamentamos isso. Roger Pinto está no Brasil não porque seja um ideólogo da oposição, ele roubou dinheiro público e fugiu.
Uma pessoa que busca proteção por causa de suas ideias deve receber proteção, mas Roger Pinto tem apenas interesses materiais muito concretos. E foi acusado de roubo por gente de seu próprio partido.
Na nossa opinião, ele não deveria ser aceito como refugiado, porque é acusado de roubo e corrupção, crimes comuns.
Quando veio para a Bolívia um peruano, acusado de atividades ilícitas e roubo em seu país, nós fizemos os trâmites legais, o capturamos, e entregamos ao governo do Peru.
Nós temos refugiados de grupos guerrilheiros do Peru, que fugiram por suas ideias, mas nós não recebemos corruptos como refugiados.
Há cerca de cem cidadãos bolivianos no Brasil em processo de pedir refúgio político ou já conseguiram…
Muitos deles estão envolvidos no assassinato de 13 camponeses em 2008 no departamento de Pando, fronteira com Brasil. A Justiça vai definir o status legal deles. O caso deles é de crime contra humanidade, foi um massacre.
E a maior parte dos que fugiram para o Brasil são acusados de homicídio e genocídio. Quando a Justiça se pronunciar, vamos fazer os trâmites legais ante o governo brasileiro.
A Bolívia se tornou membro pleno do Mercosul em julho. O que isso traz de mudanças ao país?
É a incorporação a um mercado regional muito importante. A Bolívia quer participar em todos os processos de integração continental. Estamos convencidos de que o século 21 vai ser marcado pela ação dos Estados Continentais.
Países articulados como continentes são decisivos para reposicionar beneficamente os efeitos da globalização, que é irreversível.
Se a América Latina age como um continente, são 500 milhões de habitantes, seremos uma potência. Nossa aposta estratégica é um Estado plurinacional continental.
*E a Bolívia apoia a aproximação e eventual acordo entre Mercosul e Aliança do Pacífico, ainda que Bolívia e Chile não tenham relações diplomáticas por causa do contencioso sobre a saída para o mar
Resolvido o caso da saída para o mar, Chile e Bolívia poderiam ganhar muito. Acabaram de assinar agora o acordo do Pacífico [Parceria Transpacífico, assinada nesta segunda entre 12 países, entre eles o Chile] que abrange 40 % do PIB mundial.
Imagine Bolívia e Chile juntos, como ponte para o comércio entre Brasil e China? Resolvido o tema da soberania, nós temos um campo infinito de benefícios mútuos.
Mas antes que se resolver o tema da saída para o mar, é possível fazer uma aproximação e eventual acordo de integração entre Aliança do Pacífico e Mercosul?
A integração passa necessariamente, obrigatoriamente pela resolução da saída da Bolívia para o oceano Pacífico.
A Assembleia da Bolívia aprovou uma mudança constitucional que permite ao presidente Evo Morales tentar a reeleição pela terceira vez em 2019 (ainda precisa passar em referendo em fevereiro). O presidente vai tentar se reeleger? isso não é uma ameaça à democracia?
Democracia é participação. Democracia é a intervenção da sociedade na definição de seus assuntos comuns. E isso nós estamos respeitando e honrando. Alguém questiona a democracia da Alemanha, por causa de alternância de poder?
Na Alemanha também não há limite de reeleição, e todo mundo a qualifica como país altamente democrático. É curioso.
A América Latina também é muito democrática. Há a possibilidade de que as pessoas elejam o presidente Evo de novo, isso é altamente democrático, porque o povo vai participar e decidir.
As pessoas podem dizer que concordam ou não concordam, mas o poder de decisão está nas mãos do povo, isso é democracia.
Brasil e Bolívia anunciaram planos de construir uma hidrelétrica no rio Madeira. Com a crise econômica brasileira, isso se mantém?
Nós estamos entusiasmados. Da parte da Bolívia, nossos estudos estão avançando temos os recursos necessários. Estamos à espera de que o Brasil dê os passos que correspondem a ele.
Até o ano passado tivemos um trabalho muito intenso, mas nos últimos meses, por causa da crise econômica mundial, houve uma desaceleração (nos planos).
Mas a Bolívia está preparada, vamos a caminhar no ritmo que Brasil determinar, porque o mercado é o Brasil.
É necessário aumentar os investimentos na exploração de gás na Bolívia, para manter a produção…
Estamos levando à Assembleia no máximo em 15 dias uma lei de incentivos estabelecendo o seguinte: a empresa estrangeira ou estatal explora; se não encontrar nada, azar dela, risco dela.
Se encontrar gás ou petróleo, tem um conjunto de incentivos quanto ao preço do gás e petróleo que entrega ao Estado, melhor que o preço internacional, e abrimos mercados preferenciais, para que se recuperem os investimentos. A remuneração é atrativa, acho que haverá recursos para a exploração.
O senhor viveu e estudou a ascensão da esquerda latino-americana. Como vê o que está ocorrendo com a esquerda no Brasil e nos resto da região hoje, há uma crise?
É um desvio temporário. Um desvio no longo caminho da esquerda continental, que está relacionado à substituição de lideranças, como no caso da Venezuela e Argentina, e aos efeitos da crise econômica, são desafios que põem à prova a fortaleza e o vigor dos processos progressistas e revolucionários.
Não é um destino inescapável. Alguns vão dizer é o fim da esquerda. A direita vai dizer, mas já dizia desde o início, é temporário, amanhã eles vão embora.
Na Bolívia prediziam uma catástrofe por ano: quando assumimos eles previam incapacidade para governar, depois a inflação, corrida aos bancos, falta de gás, apagão. A direita sempre vai ter um pretexto pata dizer eles vão cair amanhã.
À esquerda mais radical, que vê com entusiasmo esse desvio, é preciso dizer a experiência ensina que depois dos governos progressistas o que vem não é um governo ultrarrevolucionário, o que vem é a direita. Aconteceu na Bolívia em 1971, 85.
Então essa suposta esquerda mais radical que bate palmas e vê com entusiasmo esse desvio, pensando que agora é a vez dela, está errada. A esquerda é essa que existe hoje, dentro do processo, não é por fora.
Os que fazem por fora estão criando as condições para um regresso conservador. Tenho esperança de que este será um desvio temporário.
Alguma autocrítica sobre os erros cometidos pela esquerda?
Cometemos muitos erros, porque além de tudo somos uma geração que nunca tinha estado no governo. Erros que precisam de uma maior autocrítica são dois: relacionamento com os setores populares e a maneira como se distribui o peso econômico do ajuste.
É preciso manter mecanismos que mantenham a justiça, mas que não asfixiem a produção, o meio termo não seja injusto mas também não paralise e bloqueie o investimento privado.